A estrada rasgava-se na sua frente. Àquela hora o tráfego era comummente intenso mas ainda sem paragens para entrar na ponte. Encostou-se à direita e negociou devagar as curvas que lhe iam surgindo, deixando que os outros o passassem em velocidade acelerada. Sentia-se tolhido de movimentos e sem qualquer vontade de regressar a casa. O leitor de cedês do carro desfiava músicas dos Dire Straits, um disco adquirido na loja da Virgin em plena Picadilly no coração de Londres. Lembrou-se com saudade dessa viagem, a última que fizera com as filhas Maria e Marta, que nesse tempo ainda adoravam viajar com o pai e a mãe Bárbara. Anos mais tarde as raparigas saíram de casa com destinos diferentes. Maria a mais velha, trabalhava em Bruxelas ligada à Comissão Europeia. Marta optara por doutorar-se nos Estados Unidos, numa universidade do interior americano onde leccionava. Restava-lhe apenas Bárbara… e o Filisteu, um rafeiro trazido para casa por uma das filhas, encontrado abandonado na rua.
A mulher? Recordou a primeira vez que a viu numa festa de aniversário numa vivenda enorme para os lados da Caparica. Era a mais bela de todas, de longos cabelos doirados e olhos muito azuis. Ao seu redor uma corte de jovens tentavam inutilmente captar-lhe a atenção e quiçá conquistar-lhe o coração. Mas Bárbara reparou logo em Sabino, que percebeu o olhar penetrante e voraz da rapariga, mas fez de conta que era nada com ele. Cumprimentou uns amigos aqui, osculou duas amigas mais à frente, entreteve-se a conversar com outros. A jovem seguiu-o com o olhar para profundo desânimo dos conquistadores que a rodeavam. Quase no fim da festa foram finalmente apresentados. E desde esse instante Bárbara jamais o abandonou. Dois anos mais tarde casavam com pompa e circunstância num palacete em Sintra. Nasceram as filhas, Sabino herdou o negócio do sogro, a vida tornou-se diferente… Repleta de muitas festas, jantares, longos fins-de-semana na neve, uma mão cheia de rigorosamente nada…
Hoje Bárbara era uma mulher doente devorada pelo álcool e pelos medicamentos. Se não estava embriagada, drogava-se com ansióliticos e antidepressivos. Era impossível manter um diálogo normal com ela. Concluía um conceituado psiquiatra que a acompanhava que só um grande choque emocional a traria novamente ao mundo real. Até lá… era aguardar.
Até lá moía o juízo a todas as empregadas que dificilmente aguentavam mais que uma semana os maus génios e as imbecilidades de Bárbara. Depois era a ele que se atirava quando já não tinha mais ninguém. Um inferno de vida que Sabino não sabia minorar nem resolver.
Retornava a casa cumprindo uma promessa que fizera momentos antes à mulher. Mas o desejo de não aparecer era muito maior pois adivinhava antecipadamente o que iria encontrar. Aproximou-se dos primeiros tabuleiros de acesso à ponte por cima de Alcântara conduzindo sempre em velocidade moderada, tentando em vão retardar a chegada. À sua frente surgiu o Tejo, mais mar que rio, um espelho a devolver em tons brilhantes a luz reflectida do sol da tarde. Do outro lado o Cristo-Rei mais parecia um portageiro, de braços abertos querendo abraçar Lisboa – como dizia o poema. De súbito uma ideia surgiu na mente. Era um pensamento tolo e idiota porém verosímil. Parou de supetão a viatura em cima do viaduto, ligando os quatro piscas, como estivesse avariado. Vestiu o colecte reflector e foi ao porta-bagagens donde retirou o triângulo colocando-o à distância recomendada por lei. Os outros veículos desviavam-se agora, criando desde ali uma fila que Sabino pode reparar se começava a estender para lá do que a vista alcançava. Finalmente circundou a viatura e num ápice subiu o primeiro separador da ponte e empoleirou-se no gradeamento de fora. Foi um momento… simples.
Deixou-se cair… Ainda conseguiu ouvir uma voz gritar:
- Meu Deus, não faça isso…
O ar entrava-lhe a uma força tal que quase nem conseguia respirar. Viu o comboio a passar e uma face de espanto por detrás da vidraça. O chão aproximava-se a uma velocidade vertiginosa. O que há pouco lá de cima pareciam minúsculos pontos eram agora objectos cada vez maiores. Cresciam abissalmente: carros, casas, pessoas. Naqueles breves segundos, lembrou-se do que acabara de fazer e porque o fizera. E obteve um derradeiro pensamento: para que te cures Bárbara!
Já nem sentiu o corpo esborrachar-se contra o chão da calçada da Tapada, nem ouviu o grito de D. Cesaltina que por ali andava a passear o Bolinhas, um cachorro velho e quase cego e que se assustou com o baque seco e forte do corpo pesado a bater no pavimento, ladrando timidamente. Mais tarde alguém tapou o cadáver antes da chegada da ambulância e da polícia. Os comentários eram invariavelmente os mesmos:
- Que levará uma pessoa a fazer uma coisas destas?
Alguém respondeu:
- Talvez tivesse alguma doença…
Bárbara após o funeral, curou-se finalmente: encheu-se de álcool até morrer de cirrose…