Sou crente e sou católica. Mas não gosto de ir à Missa.
Ficou-me desde a infância, aquele cheiro a mofo e a hálito de retardado jejum, que se me fixou no olfacto e na memória, “seculo seculorum”... Também nunca esqueci o pulguedo e percevejada que invadia as minhas pernas no Verão, bem como as das elegantes senhoras, de chapéuzinhos floridos e vestidos de “crepe da China”, que tentavam atenuar as danadas comichões, roçando disfarçadamente uma perna na outra.
De Inverno, a coisa também não melhorava. A igreja era um gelo, entrava chuva lá dentro, e havia sempre alguém que sistematicamente me espirrava para o pescoço...
Entretanto, começava o coro das tosses. Como uma matilha de cães quando começam a ladrar – era só um começar a tossir – seguia-se logo um rosário aflito e dissonante dos constipados e dos propensos a bronquites crónicas.
É claro que a leitura do missal, ainda por cima em latim, mal se ouvia, mas também a ninguém já se importava.
Não esqueço – nem perdoo o que então me aconteceu. Nessa mesma igreja, o padre velho e ranheta que aí dava as missas, já tinha topado quanto me constrangia ouvi-lo falar do inferno. Eu tinha nove aninhos e acreditava em tudo. Pois ao destapar a caixa de Pandora onde se escondiam os infernais fogos, era em mim que depunha aqueles olhos de iguana das Galápagos, inflamando a voz, e gesticulando ameaças seculares.
Um Domingo, enchendo-me de coragem, resolvi confessar-lhe os meus pecados, que já julgava imensos e terríveis.
Pois a primeira coisa que esse senhor se lembrou de me perguntar foi se era virgem. Honestamente respondi-lhe que não, que a Virgem, essa estava lá no Céu com o Menino Jesus. Aos berros chamou-me “estúpida” e mandou-me para casa “pentear macacos”. Saí, aterrada, e cheguei a casa em profuso pranto, mas sobretudo preocupada em “como encontrar macacos para pentear – seria no Jardim Zoológico?!”
Ao contar toda esta história à minha Mãe, ela não disse nada. Mas proibiu-me terminantemente de voltar aquela igreja.
Exceptuando uns anos mais tarde, onde frequentei um colégio de freiras - de excelentes professoras, diga-se de passagem – não voltei tão cedo a ouvir missas. No entanto, como sou justa, devo dizer que nesse colégio a capela era limpa, sempre com um rico cheirinho a incenso, e que o padre capelão, jovial e bonacheirão, não fazia perguntas estranhas, e perdoava com humildade os inocentes pecadilhos do seu rebanho. E as missas, rápidas e claras não chateavam ninguém.
Passados anos, casei-me, não fui feliz, e já esquecera sermões e missas. Rezava uma Avé Maria e um Padre Nosso diários – “y punto” – como dizem os nossos vizinhos espanhóis.
Muito mais tarde voltei a casar-me e julguei poder fazer definitivamente as pazes com toda a corte celestial.
Todavia...uma vez por curiosidade, decidi visitar uma igreja próxima da nossa casa. A igreja estava rodeada por um bonito jardim, aromatizado, em profusão, com nardos, jasmins e suculentas rosas. Gostei. Da igreja, por fora nua e fria, não gostei tanto. Que pena que já não se construam aquelas pequeninas igrejas românicas escuras e solenes, que chamam para dentro e não para fora. Ao entrar, junto ao altar, aquela enorme Nossa Senhora, de rosto aborrecidinho e peito achatado de tísica, não apetecia à devoção. Na capela ao lado, uma amorosa Virgem, do século XVII, dando de mamar ao Menino, essa sim aconchegou-me a oração.
Começou a missa. Já não era em latim, mas lá estava a tal vozinha espremida e amaricada, que continua a ser o estandarte ridículo da moda clerical. Porque será que os padres não falam normalmente, ao dizer a missa, ou a pregar?
De repente, esturge o órgão, a esganiçar um não sei quê atrapalhado e, logo a seguir, salta a melodia...
Oh meu Deus! Eu não me pus a rir por vergonha... Num Nhã...Nhã...Nhã... sensaborão e sem graça, duma banalidade só comparável às canções do M. Paulo, aquilo bradava aos Céus!
Tenho a impressão de que Deus, que tem bom gosto, ao ouvir cânticos triviais e lamechas como este, é capaz de simplesmente os mandar às urtigas. E, arreliado com tanta estupidez, largará um veemente “Chiiiiça!...” Ou algo pior...
Por favor, não componha nem cante quem não o sabe fazer. Música religiosa? É linda! Porém não tem sido aproveitada. Escutem, por exemplo, as maravilhas dos Monges de Silos, escutem e gravem outros cantos gregorianos - que os há, esplêndidos de vigor e santidade. Que se escutem, durante as missas – já que ninguém as canta bem ao vivo – gravações de obras de Bach, Vivaldi, Mozart, Carlos Seixas, etc, e até a extraordinária Missa amazónica, cuja beleza extasia o mais descrente.
Lembrem-se também de afinar órgãos antigos – em Mafra existem oito, do século XVIII, que estão à deriva – e isso, sim é que é um atentado à arte e à religião.
Todavia... ia-me esquecendo outro contratempo que tanto me alterou naquele dia.
Foi na altura do Padre-Nosso.
Como é fácil calcular, a moda, gentil mas fatal, do aperto de mão fraternal quando se cita o Padre Nosso, vem, em pleno Inverno, acelerar alegremente o cultivo e propagação, em cheio, das constipações e das gripes. Pois, nessa ocasião, estava à minha frente uma velhota, que levou o tempo todo a assoar-se ruidosamente a um lenço de papel. Era aflitivo ouvi-la “descarregar”... Lembrava-me a lava de um vulcão, quando alastra lenta, esponjosa e volumosa, pela encosta...Ao acabar uma assoadela, lá metia ela o lenço – sempre o mesmo – num saco que parecia servir de saco do pão... E a mulherzinha, depois de limpar a mão peganhenta à saia, não é que vai sorrindo boamente, estender a mão aos demais?!!!
Espavorida, esgueirei-me sorrateiramente para o banco de trás. Depois, não aguentando mais, saí porta fora. Sou crente e sou católica, mas Missas assim, tenham paciência, para mim, não. Não gosto. E por isso não tenciono repetir esta experiência.
Que assim seja. AMEN.
Maria Luísa Loytced-Hardegg
*