Lourenço mal se preparava para a noite. Resistente ao ritual de se instalar na cama para dormir pede auxilio a quem com ele, durante anos, o acompanhava nesta passagem. “Vai-te deitar, são horas”, dizia a mãe num tom que ele adivinhava e deixava que se repetisse vezes sem conta. “Estou cansada de te dizer, vai-te deitar”. Lourenço não gostava desta despedida. Custava-lhe deixar o dia. Ainda estava a saborear todos os momentos que interessadamente procurara; jogar com os amigos à bola, falar de um possível presente de Natal, especular sobre um fim-de-semana na casa de um amigo, ou sobre a próxima visita ao pai que vivia no campo. “É a última vez que te digo para ires para a cama”, ditou a mãe num tom imperativo. Talvez fosse este sentido de dever arrastado que o impelia a ir para a cama resignado. O quarto estranho, escuro, arranjado à maneira de um rapaz da sua idade, parecia terreno desconhecido, a ser conquistado, como se de Aljubarrota se tratasse. Medo de prováveis armadilhas e falsos esconderijos nos quais pudesse, com a mãe, tropeçar. Lourenço, um cavaleiro de aventuras diurnas, não gostava de se arriscar à noite. Desconfiava do que a noite lhe podia oferecer. “Sonhos”, propunha-lhe a mãe; “pesadelos”, pensava ele. Desejava ter a mãe sempre por perto, só para ele. Lembrava-lhe outras companhias que não as da escola, recuperava territórios quentes de abundâncias várias, visinhadas de ternura, risos, jogos de prazer e excitações comedidas que não queria abandonar. A mãe. “A mãe está aqui”, dizia-lhe para o acalmar. Olhava para ela, agarrava-lhe a mão, agitava-se querendo encontar um recanto frio nos lençóis envolvendo-se tocado por uma pele fina como a areia do deserto. Uma beleza clássica que o inspirava e que o levava ao sono, de um momento para o outro, abandonava-se e adormecia. Uma espécie de melodia Pop agitou o telefone de forma estridente e apressada. Lourenço atendeu. Era a mãe noticiando que se dirigia para o aeroporto, um trabalho urgente chamava-a para um país distante. Nessa noite, Lourenço ficou sem ninguém. No quarto, à hora de deitar, abriram-se caminhos de uma solidão incómoda por onde teve que passar, e hesitantemente, se desviar para não tropeçar. Antes de adormecer, tentou fazer-se acompanhar e, deitando mão a uma paisagem lunar, encontrou um menino de cabelo de oiro a olhar as estrelas que, com uma voz muito fininha lhe pediu, “conta-me um sonho”. “Um sonho?”, exclamou Lourenço, levantando-se de um salto. Esfregando os olhos, viu o menino com um ar muito sério, “conta-me um sonho”, insistiu. Lembrara-se da parafrase que a mãe evocava “quando um mistério é grande demais, não nos atrevemos a desobedecer”. Nunca tinha pensado contar um sonho a alguém. Resistira tão afincadamente durante anos aos convites da mãe. Respondera ao menino que só pesadelos, ao longo de anos só tinha tido pesadelos.”Não, pesadelos não”, resmungara o menino. E contrariando a pouca vontade perceptivel na voz de Lourenço, tornou a insistir “sonhos, quero sonhos”. Repentinamente, assomava-se a possibilidade de uma aventura nocturna. Timidamente Lourenço atreveu-se, “A minha mãe foi para um país muito distante, tão distante que tem que se atravessar um deserto, pois, ela foi num avião, e o avião caiu, estava com um problema no motor e como não havia mais ninguém para o arranjar teve de o consertar sozinha, à noite, já cansada, deitou-se na areia e adormeceu, distante daqui, de mim que sou seu filho e de tudo, foi acordada por uma voz fininha, a pedir “conta-me um sonho”. Lourenço, acariciou o volume compacto de um papel ilustrado e dirigindo-se ao menino começou a ler “O Principezinho”, e articulando receosamente as palavras soletrou “Uma vez, eu tinha seis anos, vi uma imagem magnifica...” e contou o sonho.