Carta de desamor de Filipa Barreto
Senhor;
Pensei muito antes de lhe escrever esta carta. Detesto odiar, carregar na tecla da raiva, responder mal, ficar zangada, dizer não, desafiar, irritar-me, enfim largar o que me vai na alma. Sinceramente, li na Maria, esta semana, pois, no meu horóscopo. Sou peixe (e não sei nadar, veja lá o senhor como são as coisas...) e, lá, dizia para eu deitar fora a minha raiva: há uma pessoa na sua vida que já não pode ver...diga-lho. Não se contenha, só assim mostrará que é forte e ultrapassará o seu drama pessoal. Não percebi muito bem isto do drama...mas foi de si, sim de si, que me lembrei. Não me sai da mente. Não faz uma ideia, até já contei à SÓninha, a minha vizinha da frente, ela sabe muito destes dramas pessoais, ai que palavrão! Aconselha-me, é boa amiga. Olhe, no outro dia, até a vi chorar tanto, foi o Alfredo, sim o do rés do chão, aquele que faz musculação, deu-lhe uma carga daquelas...ela explicou-me tudo. Só lhe digo tive pena dele. Já fizeram as pazes, e ela até está grávida, dos dramas é ela que me ensina tudo. Quando lhe contei aquilo do horóscopo, disse escreve-lhe já! Assim fiz, a SÓninha é mesmo boa conselheira. Pronto, aqui vai:
Já não o posso ver mais vezes.
Não sabe quem eu sou? Pois nem eu sei quem é. Vejo-o todos os dias, na mesma paragem à mesma hora, apanhamos o mesmo autocarro, o mesmo metro, o mesmo caminho. Já reparou? Sim, sou aquela senhora de óculos graduados, e muito magra, até elegante (diz a madrinha), as cores que visto? Sombrias, gosto do negro, morreu-me a minha mãe, e também do cinzento. Às vezes também uso umas jeans, são da minha irmã, por sinal é muitíssimo boa rapariga e que se preocupa comigo, empresta-me umas roupas mais modernas e quando vamos comer um gelado oferece-me um cone de três sabores. É lá no Colombo, aos domingos à tarde. Sim, sim, naquela geladaria com muitos sabores. O meu sobrinho Zé também gosta de ir ao centro, vai com os amigos, acho que é ao cinema, no outro dia até foi a policia a casa da minha irmã para falar com ele, parece que tinha trazido qualquer coisa para casa, não viu, a minha irmã nunca me sabe explicar muito bem porque é que já não é a primeira vez que a polícia aparece. Também, o que lá vai lá vai. Como vê não dou muito nas vistas. Tenho sempre a mesma mala e o mesmo olhar, a mesma boca, não não reparou, já se vê que não. O nariz, é maneirinho, diz a Rosinha, a minha colega de quarto. É tão linda a Rosinha, se a visse havia de reparar...Tem cá um corpinho bem feito, e aquelas mamas, é roliça, e ri-se muito, só lhe digo que é virgem e tudo, não se chega aos homens. E dá-me cada apalpão nas coxas, olhe até acho bom, às vezes quando está sonâmbula, porque ela dá-lhe o sono muito leve, até me diz umas frases, que olhe aquilo só visto, é uma brincadeira, diz-me ó minha gatinha mostra a...está a ver?, ou vira-te para baixo, para cima, e lambe-me os ...ai nem lhe conto, é por de mais. E eu a fingir que estou a dormir. Passo por mais velha, foi sempre assim, Mas olhe, eu realmente já não o posso ver à minha frente. Mude de chapéu, de olheiras (gostou desta?), de calças, de sapatos, ou de qualquer coisa, eu não sei. É só mesmo porque aquele horóscopo não me sai da cabeça e tinha que descarregar. Aqui, já. Pronto s...
Até amanhã.
Não se zangue, até me fez bem, sinto-me até próxima de si, cai-me no gôto.
Não quer cortar relações comigo? É assim que se diz não é, quando uma pessoa tem dramas pessoais? Até sempre.
A sua Laurinha