Aterraram na mesa, quentes e estaladiças. "Adoro comida indiana!" "E os páparis?" Corrigiu o acento, pressurosa, perfeccionista, a tentar imitar o empregado pele canela, olhar carvão. Observou. Escolhia atentamente. Ela escolheu apressadamente, distraída com n coisas em redor e também porque não gostava de comer, mas sim de petiscar, saltar de prato em prato, provar de tudo. E de beber. Mas a libação foi um solilóquio e o vinho desmerecia o momento.
Voltou a observar, através do vidro barato do copo. Transparente - opaco - olhar - a cor - o lugar -as cores - os sentidos - sim, ou não. O cérebro a disparar, veloz o pensamento,o corpo controlado. O banco incómodo, alto demais, sentia-se num púlpito a discursar. Horrível, queria estar lá em baixo a partilhar, o pão borracha, os molhos inebriantes - bem vindos os sabores novos, este sabor novo e grato. Assustador. As unhas na defensiva, hoje não trazes verniz, pois não, isso é importante? sorrisos e reticências, Ingmar não te metas, a vida já tem ficção suficiente.
A sobremesa era verde. Dividida. Verde lembrava-lhe algo importante e não queria re-conhecer, mas já isto é conhecer duas vezes, pelo menos. E o repasto estragado com uma água acneica, que horror, não há cozinheiro que aguente tamanha falta. Uf, a refeição arrasta-se, o tempo não (es)corre na ampulheta, já lhe dói o traseiro, farta de estar mal sentada, isto nunca mais acaba para passar ao imediato - esta urgência no viver -, o futuro é agora, que o fim é sempre iminente (o outro já sabia disto, por isso é que inventou a filosofia do instante, não tinha ilusões, coitado, morreu doido agarrado ao cavalo) - carpe diem, imbecil, fazes sempre o contrário do que devias (?) e não há culpa que te valha. Todo o tempo é tempo perdido por uma causa herdada, não sabias?
E a noite estragada por uma guloseima rejeitada, agora já não há, vão fechar para descanso semanal ou ad aeternum, che sera, sera. Vem a conta e tu fazes de conta que não sabias, não sabes, não queres é saber, enterras a cabeça na areia ou no volante, na rua tens vontade de voltar atrás, saborear o que perdeste, mas o tempo é um fio sempre desenrolado para o mesmo lado...a negra com quem te cruzas vai guinchando ao telemóvel que o seu homem quer é que ela fique com a minina para ir ao concerto do Paulo Gonzo, não querem lá ver? sózinho, pois claro, sem ela, onde é que isto já se viu, eles agora também se querem emancipar - e a raiva põe-na a comer uma baga venenosa; humanista ele acorre, a tragédia iminente não se desenrola, salva-se a negra e a consciência, que lindo o momento, assim é um gosto viver, prender o fio, enganar-lhe as voltas - às vezes até deus conseguimos sentir-nos. E agora, adeus, dorme bem, boa noite, um dia destes repetimos. Talvez. Inch'allah moura,ou moira, sabe-se lá!
Miriam