Forum dos alunos do Curso de Escrita Criativa do El Corte Inglés
Quarta-feira, 30 de Maio de 2007
GAIVOTAS EM TERRA

I. As colegas invejavam-lhe o brilho cristalino do olhar, os dedos esguios de unhas afiadas e longas e o colo elegante, onde pontuava sempre um fino colar cinza, feito de penas. Tinha um andar dengoso e bem compassado, que fazia os homens voltarem a cabeça quando passava - nem o jovenzito paquete se furtava a lançar um olhar de apreço, quando se cruzavam nos corredores da empresa.


Os homens...oh, esses, coitados,  estranhavam-lhe o carácter tranquilo, a serenidade de uma solidão assumida. Todos, mas todos mesmo, lhe estranhavam os silêncios prolongados, o olhar perdido no horizonte. Mas, c'os diabos, qual horizonte, se em volta era tudo paredes brancas e quadros de planeamento?


Estranhavam particularmente as ausências inesperadas - desaparecia e, só passadas umas horas, é que voltava a surgir na sala, como que por encanto, fresca e airosa, como se estivesse regressada de um hamman. Ainda assim, nunca deixava trabalho em atraso e se lhe perguntavam por onde tinha andado, respondia, zombeteira, que tinha ido ver o mar.


.................


II. Aguçou-se com acerto na aspereza das rochas. Catou-se com impaciência nervosa e, deitando um olhar rápido à esquerda e à direita, apreciou a situação: a pacatez dos velhos à beira mar, esquecidos já do tempo, a luxúria dos corpos vigorosos e jovens, esquecidos ainda do tempo, a traquinice dos miúdos, ignorantes do tempo...Desfrutou do espectáculo, com gozo sublime. Subitamente inquieta, rodou no horizonte:  morria a luz do entardecer. Fazia-se tarde. Espreguiçou as asas com altivez, empertigou-se e apontou à linha da costa com precisão astronáutica, lançando-se nas alturas.


.................


III.  Com o passar dos anos habituaram-se à suas bizarrias e deixaram de lhe prestar atenção.


No dia do funeral compareceram os colegas em peso - estimavam-na, embora  não a conhecessem bem, porque era inofensiva, dotada de uma estranha calma que não entendiam, pois estava sujeita à mesma pressão de todos, lá dentro. E, sobretudo, nunca lhe adivinharam a dupla personalidade.  Nem mesmo quando o cemitério se encheu de gaivotas lamurientas na hora do cortejo fúnebre...


................


Miriam 





publicado por Perplexo às 22:54
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Abril 2010
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
14
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30


posts recentes

Lançamento de livro de al...

13º Curso de Escrita Cria...

"Um livro pouco Important...

Décimo segundo curso de E...

"Antes de começar", e Alm...

Carta de desamor, de Nuno...

Carta de desamor, de Ana ...

Carta de desamor, de S. M...

"A Saga de um Pensador", ...

Carta de desamor, de Manu...

arquivos

Abril 2010

Fevereiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub