Forum dos alunos do Curso de Escrita Criativa do El Corte Inglés
Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2009
Desamor de vida, por Rui Mateus

Acabei de me levantar, tomando uma decisão, acabar com esta relação, um desejo latente de muito tempo, tempo demais, mas como diz o povo mais vale tarde do que nunca …tarde essa, maldito dia, que aparece soalheiro, dia impróprio para terminar uma relação que tem me atascado até ser dolorosa.


Custa a levantar, não é de hoje, não aguento a sua presença, é horrível pensar assim é horrível senti-la, um sentimento atroz, de que toda uma vida ou parte dela não valeu a pena estar junto nesta…relação, esta deixou de ser há muito tempo. Tempo em que apanhava o eléctrico, aquele amarelo que sobe e desce as colinas nesta cidade onde me aprazia estar, mas mesmo esta cidade me importuna, me sufoca, me repulsa…maldito sol que me queima, ele que parece dizer… não é possível acabar uma vida, um sentimento, neste dia tão cheio…merda, mas estou decidido. Não há nada que me impeça, nem o rio, aquelas águas que me obrigavam a soerguer cedo, astro rei a levantar com pompa e circunstância, imponente que quase me sufocava de deslumbre, ao contrário da tua presença, maldita sejas, figura sempre deprimente, chorosa, impotente de alegrares com o som daquele pássaro que todas as manhãs chilreava de contentamento, continuo sem saber o porquê dessa alegria obscena, presa numa gaiola, sim nem mesmo nesta jaula doirada te sentes bem, até televisão com cabo temos, duzentos canais, embrutecimento, tristeza, nada te serve, nada mesmo só o sofá, deitas nele, depois de emborcar aqueles remédios de várias cores, sem remédio.


Dormir até não poder mais, tu que metias a caminho e percorrias de lés a lés estas calçadas onde por baixo passam arroios estes em tempos eram livres como nós, agora presos, sem conseguirem saltar as muralhas de cimento, este mesmo muro que nos envolve há tempos, insuportável. Não sei se começo escrever a dita carta antes de tomar o café, esse líquido que todas manhãs me aprazia saboreando languidamente, nem este prazer me serve, as pernas actualmente me entorpecem, nada de cafeína, a carta…


Amar entre os lençóis que saudades, sentir um cheiro diferente do que o meu, um entreolhar depois de fazer amor com cumplicidade, bolas nem isso consigo, relação frígida, sem nexo, sem consumação, agora só masturbação mental…levantemos, encaremos as coisas como são tudo menos esta perca de sentidos, impossível continuar esta relação com a vida, basta uma nota, nada de floreados…até o espelho me tolhe a visão, não consigo encará-lo é a imagem desta relação, enevoada, sem cor…vendo bem este dia com este azul, só nesta cidade eu considerava único, nem isso me comove, me subtrai à vivência desta relação inócua, absurda, safa eu disse sem floreados e evitar os pleonasmos.


Nota feita, abramos a janela…só sinto uma leve sensação de peso, um sino ao longe, será…


Rui Mateus


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publicado por Perplexo às 13:00
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Sexta-feira, 20 de Fevereiro de 2009
Porque é que eu não gosto de ir à Missa, por Maria Luísa

Sou crente e sou católica. Mas não gosto de ir à Missa.


 Ficou-me desde a infância, aquele cheiro a mofo e a hálito de retardado jejum, que se me fixou no olfacto e na memória, “seculo seculorum”... Também nunca esqueci o pulguedo e percevejada que invadia as minhas pernas no Verão, bem como as das elegantes senhoras, de chapéuzinhos floridos e vestidos de “crepe da China”, que tentavam atenuar as danadas comichões, roçando disfarçadamente uma perna na outra.


 De Inverno, a coisa também não melhorava. A igreja era um gelo, entrava chuva lá dentro, e havia sempre alguém que sistematicamente me espirrava para o pescoço...


 Entretanto, começava o coro das tosses. Como uma matilha de cães quando começam a ladrar – era só um começar a tossir – seguia-se logo um rosário aflito e dissonante dos constipados e dos propensos a bronquites crónicas.


 É claro que a leitura do missal, ainda por cima em latim, mal se ouvia, mas também a ninguém já se importava.


 Não esqueço – nem perdoo o que então me aconteceu. Nessa mesma igreja, o padre velho e ranheta que aí dava as missas, já tinha topado quanto me constrangia ouvi-lo falar do inferno. Eu tinha nove aninhos e acreditava em tudo. Pois ao destapar a caixa de Pandora onde se escondiam os infernais fogos, era em mim que depunha aqueles olhos de iguana das Galápagos, inflamando a voz, e gesticulando ameaças seculares.


 Um Domingo, enchendo-me de coragem, resolvi confessar-lhe os meus pecados, que já julgava imensos e terríveis.


 Pois a primeira coisa que esse senhor se lembrou de me perguntar foi se era virgem. Honestamente respondi-lhe que não, que a Virgem, essa estava lá no Céu com o Menino Jesus. Aos berros chamou-me “estúpida” e mandou-me para casa “pentear macacos”. Saí, aterrada, e cheguei a casa em profuso pranto, mas sobretudo preocupada em “como encontrar macacos para pentear – seria no Jardim Zoológico?!”


 Ao contar toda esta história à minha Mãe, ela não disse nada. Mas proibiu-me terminantemente de voltar aquela igreja.


 Exceptuando uns anos mais tarde, onde frequentei um colégio de freiras - de excelentes professoras, diga-se de passagem – não voltei tão cedo a ouvir missas. No entanto, como sou justa, devo dizer que nesse colégio a capela era limpa, sempre com um rico cheirinho a incenso, e que o padre capelão, jovial e bonacheirão, não fazia perguntas estranhas, e perdoava com humildade os inocentes pecadilhos do seu rebanho. E as missas, rápidas e claras não chateavam ninguém.


 Passados anos, casei-me, não fui feliz, e já esquecera sermões e missas. Rezava uma Avé Maria e um Padre Nosso diários – “y punto” – como dizem os nossos vizinhos espanhóis. 


 Muito mais tarde voltei a casar-me e julguei poder fazer definitivamente as pazes com toda a corte celestial.


 Todavia...uma vez por curiosidade, decidi visitar uma igreja próxima da nossa casa. A igreja estava rodeada por um bonito jardim, aromatizado, em profusão, com nardos, jasmins e suculentas rosas. Gostei. Da igreja, por fora nua e fria, não gostei tanto. Que pena que já não se construam aquelas pequeninas igrejas românicas escuras e solenes, que chamam para dentro e não para fora. Ao entrar, junto ao altar, aquela enorme Nossa Senhora, de rosto aborrecidinho e peito achatado de tísica, não apetecia à devoção. Na capela ao lado, uma amorosa Virgem, do século XVII, dando de mamar ao Menino, essa sim aconchegou-me a oração.


 Começou a missa. Já não era em latim, mas lá estava a tal vozinha espremida e amaricada, que continua a ser o estandarte ridículo da moda clerical. Porque será que os padres não falam normalmente, ao dizer a missa, ou a pregar?


 De repente, esturge o órgão, a esganiçar um não sei quê atrapalhado e, logo a seguir, salta a melodia...


 Oh meu Deus! Eu não me pus a rir por vergonha... Num Nhã...Nhã...Nhã... sensaborão e sem graça, duma banalidade só comparável às canções do M. Paulo, aquilo bradava aos Céus!


 Tenho a impressão de que Deus, que tem bom gosto, ao ouvir cânticos triviais e lamechas como este, é capaz de simplesmente os mandar às urtigas. E, arreliado com tanta estupidez, largará um veemente “Chiiiiça!...” Ou algo pior...


 Por favor, não componha nem cante quem não o sabe fazer. Música religiosa? É linda! Porém não tem sido aproveitada. Escutem, por exemplo, as maravilhas dos Monges de Silos, escutem e gravem outros cantos gregorianos -  que os há, esplêndidos de vigor e santidade. Que se escutem, durante as missas – já que ninguém as canta bem ao vivo – gravações de obras de Bach, Vivaldi, Mozart, Carlos Seixas, etc, e até a extraordinária Missa amazónica, cuja beleza extasia o mais descrente.


 Lembrem-se também de afinar órgãos antigos – em Mafra existem oito, do século XVIII, que estão à deriva – e isso, sim é que é um atentado à arte e à religião.


 Todavia... ia-me esquecendo outro contratempo que tanto me alterou naquele dia.


 Foi na altura do Padre-Nosso.


 Como é fácil calcular, a moda, gentil mas fatal, do aperto de mão fraternal quando se cita o Padre Nosso, vem, em pleno Inverno, acelerar alegremente o cultivo e propagação, em cheio, das constipações e das gripes. Pois, nessa ocasião, estava à minha frente uma velhota, que levou o tempo todo a assoar-se ruidosamente a um lenço de papel. Era aflitivo ouvi-la “descarregar”... Lembrava-me a lava de um vulcão, quando alastra lenta, esponjosa e volumosa, pela encosta...Ao acabar uma assoadela, lá metia ela o lenço – sempre o mesmo – num saco que parecia servir de saco do pão... E a mulherzinha, depois de limpar a mão peganhenta à saia, não é que vai sorrindo boamente, estender a mão aos demais?!!!


 Espavorida, esgueirei-me sorrateiramente para o banco de trás. Depois, não aguentando mais, saí porta fora. Sou crente e sou católica, mas Missas assim, tenham paciência, para mim, não. Não gosto. E por isso não tenciono repetir esta experiência.


 Que assim seja. AMEN.  


Maria Luísa Loytced-Hardegg



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publicado por Perplexo às 12:59
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A minha Ruptura com a Escrita, de J.A. Reis Mendonça

OK! Chega! Já percebi tudo! Então eu esforço-me que nem um Neruda a dizer bem de um livro e nem sequer levo mais que uma miserável cruzita no fim da página!? Nem ao menos um “thanks for sharing but don’t leave your job”?…’Tá na altura de partir para outra. O que não falta para aí são Artes casadoiras! Já vi que contigo não me safo.


O que é giro (eu disse “giro”?) é que isto nem é a primeira vez que me acontece.


Primeiro foi a Pintura. Foi um daqueles amores da Primária, pueril. Desenhei e pintei conforme as instruções que a mestre-escola me dava para a conquistar. A minha dedicação era bem evidente pela paleta de cores que eu trazia todos os dias para casa nos dedos, cara e bibe, este sim realmente o pior sítio para trazer aguarelas para casa segundo fez questão de me esclarecer a minha Mãe, em linguagem acentuadamente gestual. (Acho que as Mães têm um instinto nato para afastar os filhos da concorrência…)


Já no Liceu foi a Música. Era uma daquelas paixões adolescentes, ardente mesmo. Quase todos os meus colegas tinham casos com ela e pensei que até eu poderia ter alguma sorte com ela. Pareceu sorrir-me mas rapidamente me abandonou. “Eh pá, não estamos em sintonia (ou teria dito “desafinas”?). Desculpa mas é melhor fazeres-te à vida, meu!” (nesse dia ela estava numa de punk). Segui o conselho e nunca mais me meti com ela.


Quase a seguir apaixonei-me pela Dança. Enfim, não pela Clássica mas pela do meu campeonato. Pode um puto, na sua legítima puberdade, passar sem a Dança? E como é que depois se safa nos bailes de finalistas? A beber minis ao balcão? Um pequeno defeito (dois pés verdadeiramente esquerdos) era razão suficiente para ela me fugir? Mais tarde ainda tentei uma reconciliação serôdia, alegando que os dois pés se tinham transformado respectivamente em pé de direita e de extrema-direita mas ela manteve-se imune à moda da deriva de direita. Três a zero!


Depois atirei-me à 7ª Arte. O que eu sofri para a conquistar! Marquei encontros no Quarteto e em outros sítios do género onde a sabia parar. Tive por companhia outros candidatos, que lhe faziam mais o género, malta de óculos de aros grossos e livros de referência debaixo do braço. Sempre se me mostrou evasiva até que me fugiu penso que para França. Para me vingar ainda fui a uma sessão no Cinebolso. Curiosamente alguns filmes eram bastante parecidos nos diálogos, só que mais enérgicos na acção. A assistência também se assemelhava só que trazia gabardinas em vez de livros.


Agora és tu, Escrita, que não queres nada comigo. Não tenho jeito? Olha a grande novidade!


Também não sou amigão de um único dono de uma editora XPTO que me aceite e me promova (o que me podia até dispensar daquela parte chata do talento). Tu, todas as semanas, tens 250 novos pretendentes a baterem-te à porta. E isto só cá! Eu faço ideia do assédio que tens com os camones! E invariavelmente trocas quase toda esta malta pelos teus velhos amantes que já ninguém se atreve a questionar quando se arrogam, alto e em bom som, que tu já lhes pertences.


Olha, sabes que mais? Vai à merda!


José António dos Reis Mendonça


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publicado por Perplexo às 12:55
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Carta de desamor, de Hermínio Corrêa

 


Cup of Tea


 


 


Está tudo acabado entre nós! Estou farto, não aguento mais esta situação…


Todos diziam que tínhamos sido feitos um para o outro e tinham razão. O criador dotou-te de curvas bem definidas e a mim fez-me mais rectilíneo, com uma reentrância onde te encaixavas perfeitamente. Os primeiros tempos da nossa vida foram fenomenais! A nossa lua-de-mel passámo-la numa loja do Gato Preto, dentro de uma caixa de cartão, muito juntinhos e embrulhados em “lençóis” de seda. Dizias que me amavas, e eu acreditava…


Depois quando nos mudámos para casa, a nossa vida melhorou. Passámos a viver na cristaleira da sala de jantar, e a fazer parte do “jet-set. Frequentávamos chás canasta e tu eras sempre o centro das atenções… Chás de toda a parte do mundo disputavam os teus favores, mas tu, sempre fiel à tua linhagem, preferias sempre os ingleses. E eu ficava ali, deslumbrado a ver-te. Sentindo teu corpo a aquecer, seguindo teus movimentos para cima e para baixo, até te recolher toda só para mim. Depois, seguíamos muito juntinhos para a máquina de lavar a loiça, onde a seguir a uma pré-lavagem brincávamos com os flocos de detergente como crianças a brincar com a neve.


Foram tempos maravilhosos!...


Mas aos poucos e poucos as coisas foram-se desmoronando. Primeiro alguém resolveu meter entre nós uma colher. Eu devia ter desconfiado... Devia--me ter lembrado do ditado “entre marido e mulher não metas a colher”. Mas o que é certo é que a meteram, e foi aqui que começou o meu calvário.


Os chás canasta deram origem aos “five o’clock tea” e eu ficava ali amparando-te, enquanto a colher te penetrava, e com gestos mais ou menos ritmados, te punha a cabeça a andar à roda. Eu roía-me todo de ciúmes, mas fazia um esforço para disfarçar, pois não queria que tu pensasses que eu era “old fashion”. Mas mal sabia eu, o que estava para vir…


A partir daqui começaste a agir de um modo diferente. Já não procuravas a minha companhia, e às vezes à noite quando eu fingia que estava a dormir, via-te a  saltitar de pires em pires. Tudo isto fui aguentando por amor!


Mas o destino reservava-me outras surpresas maiores…


 De repente abandonaste os "Timings" e os "Whittard" e começaste a meter-te nos pozinhos. Primeiro os cacaus, depois os chocolates, desprezando por completo as tuas origens de uma verdadeira “cup of tea”!


 E foi o começo da tua desgraça!


 De pó em pó foste parar à cafeína, e como se isso não bastasse, começaste a juntar-lhe um “cheirinho”. Foi o fim.., deixaste de ir à máquina de lavar e passavas as noites de pernas pró ar no lava loiças, a curtir o teu “cheirinho”.


Basta!


Para mim basta!


Acabou tudo entre nós. Quando voltares, já não estarei na cristaleira da sala, pois mudei-me para o armário da cozinha. Quero ser livre, quero viver as coisas simples da vida, como sentir o peso de um brigadeiro, ou de um pastel de Belém. Quero que me encham de mousse de chocolate, leite-creme ou bavaroise de ananás.


Enfim…quero viver a minha vida sem ti.


Adeus Xícara, até sempre!


 Pires


 


Nota: Cup of tea ao receber tal missiva, não aguentando tamanha dor, aproveitou umas mãos engorduradas e deixou-se cair no chão ficando totalmente destroçada!


  Hermínio Corrêa




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publicado por Perplexo às 12:51
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Carta de desamor, de Aleksandra D.

            Um dia precisei de ti sem saber quem eras, e do nada brotaste. Sentaste a meu lado e conversámos. Era como se sempre tivesses feito parte da minha vida e contigo sentia-me segura. Apaixonamo-nos. Por ti, lutei contra tudo e rejeitei sem hesitar os que não desejavam a nossa felicidade. Resguardei-me na armadura que forjei para nós e pensava: se não existisses tinhas que ser inventado. Tantas vezes me apontaram o dedo acusador: maluca!, diziam. Não acreditavam num homem tão perfeito e ameaçavam-me de horrores que não me atrevo a repetir: pobres almas, não compreendiam. Pois eu sabia que o nosso amor seria mais forte e que, ultrapassados estes embaraços, iríamos acabar juntos, alheios ao mundo que insistia em condenar a nossa relação.


            A minha mãe soluçava, o meu pai berrava que correria contigo à paulada se não me sumisses da cabeça naquele preciso instante e a minha mãe chorava mais. Não eram grandes visionários e queriam proibir o amor que nos unia e tornava um só, por isso aceitei fugir contigo. Corramos pois!, pensei, pois és tudo em mim e nada mais preciso. Cega, pela calada da noite, segui os teus passos. Fugimos. Meu amor, tinha-te seguido para lá da vida terrena, tinha saltado do penhasco à mínima sugestão tua, quis caminhar como tu sobre as ondas do mar bravo da tempestade, mas subitamente as minhas acções foram descobertas e condenadas: pela força arrancaram-me para longe de ti.


            Entao veio o internamento. Nao era maluqueira, argumentava, apenas louca paixao! Mas a linha que as distingue é ténue, e o meu coração era o único que ouvia a verdade. Como um beijo suave, sussuraste a promessa da tua dedicação. Renasci forte. Estavas lá para o meu acordar e sentia a tua presença durante os doces sonhos, onde finalmente éramos só nós, um só. A doida da cama três dizia que fazíamos um bonito par, enquanto te lançava olhares esfomeados de carne e de amor. A invejosa!, mas eu compreendia, tinha tanta sorte em te ter. Opunham-se às visitas e esgueiravas-te para debaixo da cama enquanto as enfermeiras me traziam, orgulhosas, as últimas modas de farmacologia. Agora eu sou lá alguma mentecapta!, gritava, mas acariciavas a minha mão disfarçadamente e acalmava. Obediente, engolia a nossa morte com dois goles de água.


            E era a súbita metamorfose. A outra saía e lentamente emergias do esconderijo: mas vinhas tão diferente! Mudado, mais ténue, mais calado. Sentavas na poltrona ao fundo do quarto e olhavas-me de esguelha: já não me fitavas da mesma maneira. A situação repetia-se e afastavas-te mais. Não percebia: esquecer-me-ias pelas pernas da enfermeira? Sim, era jovem e bonita, mas afinal a que cama em tempos ajoelhavas e declamavas versos de amor e coragem?! Aquela lá nem dá conta que existes, recojizava eu, mas a tua face permanecia inalterável, vazia de expressão e oca de sentimentos. Receava. Porque não me olhas, pensava e dizia, porque mal te vejo? Optavas por não responder e investias o resto da tarde a olhar languidamente pela janela, absorto em pensamentos que não me deixavas ouvir. Murmúrios enchiam a ala e lágrimas os meus olhos. Começava por te observar, mas quiçá o efeito dos comprimidos ou a tua falta de atenção pesavam-me as pálpebras e dormitava. De ora a ora, despertava do sono para não te encontrar. Desaparecias e estava só. E chorava, como a minha mae. Visitavas-me menos, as drogas punham-me tonta e via-te gradualmente com menos nitidez. Esmorecias, como o nosso amor.


            Eis que avisto o espelho e vejo-me. Recordo e vejo-te. Vejo-nos aos dois num só. Lembro-me: eu sorria e tu sorrias. Agora não sorris, olhas para o lado. Desvaneces. Chamo-te. Silêncio... Deixas-me só? Deixas-me só! Renuncias-me! Vencido pelas críticas alheias, assim cedeste. Ingrato! Os teus pensamentos, a minha vontade: devota a ti, agora abandonada. Pois vai. Merecerás melhor que uma mulher acamada, mas não te perdoo a frieza. Como odeio ter acreditado nas tuas promessas, ter imaginado que estarias ao meu alcance, quando os bata-branca me tentavam convencer do contrário com discursos mansos e infantilizados. Tu prometeste a nossa união eterna se te seguisse. Vil criatura, dizias amar-me e de bom grado acreditei nessa utopia que agora vê um fim. Tudo por causa daquelas malditas drogas, que me acinzentavam o mundo e ensurdeciam para as tuas palavras! Agora já não te oiço, já não te vejo, já não te sinto. Esmaga-me a amargura e a dor. Deitada, fito o tecto. Os da bata branca consolam os meus pais aos pés da cama: parece que o tratamento das minhas alucinações tem surtido efeito e, por ora, a esquizofrenia está sob controlo, seja lá o que isso for. Vou voltar para casa, vai ser tudo como dantes. Alegram-se, suspiram, a minha mãe força o tímido sorrir. Mas eu fito o tecto e só ouço a angústia do teu silêncio.


 


Lisboa, ala psiquiátrica, cama 2                                                                      (por Aleksandra D.)


 


 


Ao professor:


  Note-se o estádio embrionário deste tipo de linguagem: não me é habitual escrever desta maneira, mas resolvi experimentar e aguardo críticas ansiosamente. Quanto a dualidade amor/desamor como conteúdo, lamentavelmente não os consegui separar com clareza, como me pareceu que pretendia. No entanto, vou me justificar apelando à dificuldade em falar de desamor sem explorar a mágoa dos bons tempos perdidos que se recorda – e quantas vezes não surgirão ambos em simultâneo conflito, numa mixórdia de sentimentos contraditórios?! Para mais, todo o conceito deste tipo de carta parece-me utópico: quem, no seu perfeito juízo, se iria dar ao trabalho e perder o seu precioso tempo com cartas de desamor puro? Cartas de amor são deliciosamente ridículas, mas as de desamor ainda menos sentido fazem: nada diz “odeio-te, não te quero ver mais e foste a pior coisa em que tive o azar de tropeçar na vida” como a insubstituível murraça na tromba. Quais cartas!...


            Sugiro que nao fique pelas lamúrias sem-sal iniciais. Procurei acelerar o ritmo no decorrer do testemunho ao sabor das abruptas mudanças de humor, e vou depenando a  relação e o tal amor alucinado à medida que os fármacos surtem efeito, para mudar drasticamente a perspectiva do leitor no final. Fui bem sucedida nesse aspecto? A carta tem remetente e destinatário implícitos, não me fez falta atribuir-lhes um nome ou formalizar a situação, que por si foge à norma. Quis intitular o desabafo da jovem como Se não existisses, mas receei que o texto se tornasse demasiado óbvio e já dou pistas mais que suficientes da real situação no decorrer do enredo.


            A minha impressora pede as mais sinceras desculpas pela falha na segunda-feira: é do tempo, sabe, até as máquinas têm direito a uma funesta gripezinha.


 Aleksandra D.



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publicado por Perplexo às 12:46
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Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009
Lançamento da "Pesquisa Sentimental", de José Couto Nogueira
O lançamento do novo romance de José Couto Nogueira, "Pesquisa Sentimental", será no próximo dia 18 de Fevereiro, quarta-feira, às 18h30, no sétimo andar do El Corte Inglès. 
Apresentação pela actriz Ana Padrão.

Estão todos convidados!



O convite está aqui:

http://pesquisa-sentimental.blogs.sapo.pt/












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Segunda-feira, 9 de Fevereiro de 2009
«VIAGENS NA MINHA TERRA», de Almeida Garrett

Teria onze ou doze anos quando o li pela primeira vez. Eu devorava livros e foi mais um. Voltei a lê-lo no programa de Literatura Portuguesa do curso dos liceus. Enriqueci-o, então, com os conhecimentos que ia adquirindo nas aulas – época histórica; dados biográficos do autor e convicções políticas que o levaram ao exílio; o Romantismo como movimento literário e introdução na literatura do subjectivismo, do individualismo e dos sentimentos pessoais. E essas impressões de viagem, entrecortadas de constantes divagações e opiniões do autor, tornaram-se uma leitura agradável se bem que tivesse apreciado bem mais o escritor como dramaturgo - «Frei Luis de Sousa» - e como poeta - «Flores sem Fruto» e «Folhas Caídas».


No entanto, não foi senão uns anos mais tarde, quando tive de o ensinar aos meus alunos e me voltei a debruçar sobre a obra, que verifiquei que quanto mais a estudava mais a apreciava e se me afigurou, então, ter grande mérito. Desde logo, a sensação de uma lufada de ar fresco na literatura portuguesa. E depois, o aperceber-me de que, sob a capa enganadora de um romance aparentemente fácil e inocente, se escondia uma obra complexa e de uma certa profundidade psicológica. Partindo duma situação já recorrente e, portanto, pouco imaginativa, em que Carlos é filho de um frade que faz a desgraça da mãe e da sua família; em que pai e filho têm ideias políticas antagónicas e se encontram a combater em facções opostas e em que há um reconhecimento final – «O Arco de Sant´Ana» e «Catão» - o autor consegue, apesar de tudo, fazer do protagonista principal um verdadeiro herói. Sentimental, apaixonado e inconstante, incapaz de encontrar um equilíbrio estável e um amor na sua vida, Carlos vive paixões sucessivas até encontrar Georgina, a mulher que diz «amar verdadeiramente» mas que também o deixa quando finalmente compreende o seu carácter. Garrett faz muito bem, e pela primeira vez na nossa literatura, a análise subtil de sentimentos amorosos e sabe dar voz à dualidade verdade/sublimação versus mentira/ficção que tantas vezes coexiste no nosso espírito.


À crise passional junta-se a desilusão do seu ideal político e revolucionário, o destroçar dos sonhos da sua juventude. E Carlos, a quem a felicidade de uma vida simples ou a glória de morrer como herói foram negadas escreve, num último gesto teatral, uma carta onde analisa, desta vez com verdade, a sua situação. Desiludido e céptico, antevendo um possível futuro de mau político ou agiota, Carlos, numa atitude de herói trágico submete-se ao destino a que não consegue fugir e rende-se ao capitalismo do Constitucionalismo.


M. Manuela T. Cruto e Silva 



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publicado por Perplexo às 01:33
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Domingo, 1 de Fevereiro de 2009
"História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar", de Luís Sepúlveda

Foi o instinto que me levou a uma história tão fascinante, onde os felinos caseiros chegam a quebrar o seu “tabu” para miar a língua dos humanos e assumir qualquer tipo de risco para estabelecer a ponte de contacto com os ditos racionais, com o intuito de defender um código de honra, a palavra dada, o compromisso.


O livro, que conta uma história de animais falantes e cooperantes, chegou magicamente às minhas mãos através da simples “dica” duma funcionária da livraria onde os meus passos sabiamente me conduziram. Perguntei-lhe, um tanto encabulada pela responsabilidade de ter em casa uma biblioteca com mais de 900 livros, onde os romances de ficção se destacam, se me aconselhava algum pequeno livro de ficção, de rápida leitura, para servir de base a um trabalho a realizar num curto espaço de tempo. A senhora sorriu, fez um pequeno gesto para que eu a seguisse e dirigiu-se à estante onde residiam os livros do conhecido escritor Luís Sepúlveda.


- Qualquer um deste autor é interessante e lê-se rapidamente. Pode levar este, a “História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”. É agradável e contém mensagem!


Agradeci, folheei o livro com o espírito santo de uma orelha a lembrar-me do stock que tinha em casa, e fiquei uns minutos esperando na indecisão. Na outra orelha, onde o pai da intuição falou mais alto pelo desejo de engordar um pouco mais a minha já pesada biblioteca, agitou-se a vontade de o comprar e devorar de imediato.


Foram 121 páginas de agradável leitura. Como tinha referido a empregada da livraria, o livro tem MENSAGEM. Encontrei muita informação do saber ser e estar em comunidade com códigos de partilha, honra e lealdade, o que me levou a levantar a questão que há muito me coloco sobre a irracionalidade dos animais.


Desde o levantar da questão ambiental relacionada com a poluição dos mares, cujas consequências são incalculáveis, até ao relato da consciencialização de quem vê, com olhos de bom ver para não generalizar atitudes - lembro-me quando a gaivota Kengah, ao amaldiçoar os humanos pela mortífera maré negra que a ia matar, lembrou que havia embarcações de protestos, decoradas com as cores do arco-íris, que, sem grandes meios, tentavam aproximar-se para impedir as catástrofes irreparáveis - o autor levou-me a sentir que viajava num mundo onde as diferenças dos seres são aceites naturalmente, onde as dificuldades são superadas com a partilha de conhecimentos, onde a união faz a força, onde “todos por um e um por todos”, onde uma promessa de honra contraída por um elemento do grupo é aceite, sem restrições, pelos demais elementos e onde existe a consciência de que o saber leva o seu tempo a aprender.


A Ditosa, filha da gaivota Kengah e nascida do ovo chocado pelo gato preto Zorbas, que queria ser gato porque só conhecia o mundo destes felinos, não podia fugir à sua natureza e ao seu destino. Aprendeu a voar para se poder juntar às suas iguais na grande convenção das gaivotas dos mares, para ser feliz e amar ainda mais aqueles que a ajudaram na adversidade.


Esta história leva-nos a reflectir sobre o muito que os humanos ainda têm de aprender sobre as suas diferenças de cor, religião, culturas e pensamentos e as formas que têm de encontrar para as apreciar, respeitar e amar porque o jogo da vida, sem diversidade, não seria tão empolgante nem atractivo.




Maria do Rosário Vasco




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publicado por Perplexo às 23:49
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"Nova Lusitânia", de Aydano Roriz

Este livro documenta tramas, vidas e locais cuja leitura é um pitoresco reencontro com a colonização do Brasil. É uma teia de personagens, acontecimentos e sentimentos, tão bem urdida num fundo histórico, que nos faz sentir a época e os episódios como se os vivêssemos. Li-o sem respirar, como a minha avó comia os mil-folhas, saboreando gulosamente, uma a uma, até à última migalha.


É um aceso retrato do século 16, acompanhando Duarte Coelho, o herói, de menino, no Porto, a primeiro capitão donatário da Nova Lusitânia. Naquela cidade é introduzido nas intimidades da corte, onde uma amante de D. Manuel I o iniciou nos prazeres da carne e o vicia num certo prato.


Depois, no Funchal, os passos do então Beleguim são narrados em cores vivas e sensualidade latente... que impele o leitor a espreitar o empernanço de uma magricela ao jovem Duarte! E plebeísmos arcaicos como zé-das-couve ou esticou as canelas transportam-nos a esse tempo e à crueza das falas, deixando-nos rendidos às dos navegadores: “Judeus – cagam, peidam, mijam... São gentes iguais à gente”.


Já na capitania, vemos o agora Dom Duarte entre engenhos de açúcar, cavalos e degredados em situações apimentadas. Roriz mostra-o ainda hábil a lidar com padres, índios e mulherio, chegando a pintá-lo de ousado parteiro... No final, o bastardo de mãe de “baixo nascimento”, é um grande senhor brasilenho com ambições de fidalguia.


Eis, meu amigo, um romance sedutor, com paisagens plausíveis, bravos feitos, gordas cobiças e em que também testemunhamos amores em modos que já não há. Tudo num bom ritmo, com figuras de estilo qb e laivos históricos que nos cativam página a página, que todas li sofregamente.


 Manuel A. Madeira



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publicado por Perplexo às 22:20
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