Suave juventude que se acerca de nós ao despontar da noite. Solitude ou vésperas de encantamento? Como poderemos nós permanecer vivos até ao renascer do dia? Como poderemos descansar ao sabor do vento de um renascimento constante que apresenta-se entreaberto pelas vagas de um tempo que passa descontraidamente? Força, hábito, coerência ou afrontamento? Quem saberá!? Quem pode oscultar tais divagações?! Saudemos pois, assim, o dia, o ocaso e o renascimento. Olhemos à manhã e ofereçamos-lhe a nossa vontade. Só a ela se ressente a realidade. Só a ela nos transfigura o amanhecer de novo.
A estrada rasgava-se na sua frente. Àquela hora o tráfego era comummente intenso mas ainda sem paragens para entrar na ponte. Encostou-se à direita e negociou devagar as curvas que lhe iam surgindo, deixando que os outros o passassem em velocidade acelerada. Sentia-se tolhido de movimentos e sem qualquer vontade de regressar a casa. O leitor de cedês do carro desfiava músicas dos Dire Straits, um disco adquirido na loja da Virgin em plena Picadilly no coração de Londres. Lembrou-se com saudade dessa viagem, a última que fizera com as filhas Maria e Marta, que nesse tempo ainda adoravam viajar com o pai e a mãe Bárbara. Anos mais tarde as raparigas saíram de casa com destinos diferentes. Maria a mais velha, trabalhava em Bruxelas ligada à Comissão Europeia. Marta optara por doutorar-se nos Estados Unidos, numa universidade do interior americano onde leccionava. Restava-lhe apenas Bárbara… e o Filisteu, um rafeiro trazido para casa por uma das filhas, encontrado abandonado na rua.
A mulher? Recordou a primeira vez que a viu numa festa de aniversário numa vivenda enorme para os lados da Caparica. Era a mais bela de todas, de longos cabelos doirados e olhos muito azuis. Ao seu redor uma corte de jovens tentavam inutilmente captar-lhe a atenção e quiçá conquistar-lhe o coração. Mas Bárbara reparou logo em Sabino, que percebeu o olhar penetrante e voraz da rapariga, mas fez de conta que era nada com ele. Cumprimentou uns amigos aqui, osculou duas amigas mais à frente, entreteve-se a conversar com outros. A jovem seguiu-o com o olhar para profundo desânimo dos conquistadores que a rodeavam. Quase no fim da festa foram finalmente apresentados. E desde esse instante Bárbara jamais o abandonou. Dois anos mais tarde casavam com pompa e circunstância num palacete em Sintra. Nasceram as filhas, Sabino herdou o negócio do sogro, a vida tornou-se diferente… Repleta de muitas festas, jantares, longos fins-de-semana na neve, uma mão cheia de rigorosamente nada…
Hoje Bárbara era uma mulher doente devorada pelo álcool e pelos medicamentos. Se não estava embriagada, drogava-se com ansióliticos e antidepressivos. Era impossível manter um diálogo normal com ela. Concluía um conceituado psiquiatra que a acompanhava que só um grande choque emocional a traria novamente ao mundo real. Até lá… era aguardar.
Até lá moía o juízo a todas as empregadas que dificilmente aguentavam mais que uma semana os maus génios e as imbecilidades de Bárbara. Depois era a ele que se atirava quando já não tinha mais ninguém. Um inferno de vida que Sabino não sabia minorar nem resolver.
Retornava a casa cumprindo uma promessa que fizera momentos antes à mulher. Mas o desejo de não aparecer era muito maior pois adivinhava antecipadamente o que iria encontrar. Aproximou-se dos primeiros tabuleiros de acesso à ponte por cima de Alcântara conduzindo sempre em velocidade moderada, tentando em vão retardar a chegada. À sua frente surgiu o Tejo, mais mar que rio, um espelho a devolver em tons brilhantes a luz reflectida do sol da tarde. Do outro lado o Cristo-Rei mais parecia um portageiro, de braços abertos querendo abraçar Lisboa – como dizia o poema. De súbito uma ideia surgiu na mente. Era um pensamento tolo e idiota porém verosímil. Parou de supetão a viatura em cima do viaduto, ligando os quatro piscas, como estivesse avariado. Vestiu o colecte reflector e foi ao porta-bagagens donde retirou o triângulo colocando-o à distância recomendada por lei. Os outros veículos desviavam-se agora, criando desde ali uma fila que Sabino pode reparar se começava a estender para lá do que a vista alcançava. Finalmente circundou a viatura e num ápice subiu o primeiro separador da ponte e empoleirou-se no gradeamento de fora. Foi um momento… simples.
Deixou-se cair… Ainda conseguiu ouvir uma voz gritar:
- Meu Deus, não faça isso…
O ar entrava-lhe a uma força tal que quase nem conseguia respirar. Viu o comboio a passar e uma face de espanto por detrás da vidraça. O chão aproximava-se a uma velocidade vertiginosa. O que há pouco lá de cima pareciam minúsculos pontos eram agora objectos cada vez maiores. Cresciam abissalmente: carros, casas, pessoas. Naqueles breves segundos, lembrou-se do que acabara de fazer e porque o fizera. E obteve um derradeiro pensamento: para que te cures Bárbara!
Já nem sentiu o corpo esborrachar-se contra o chão da calçada da Tapada, nem ouviu o grito de D. Cesaltina que por ali andava a passear o Bolinhas, um cachorro velho e quase cego e que se assustou com o baque seco e forte do corpo pesado a bater no pavimento, ladrando timidamente. Mais tarde alguém tapou o cadáver antes da chegada da ambulância e da polícia. Os comentários eram invariavelmente os mesmos:
- Que levará uma pessoa a fazer uma coisas destas?
Alguém respondeu:
- Talvez tivesse alguma doença…
Bárbara após o funeral, curou-se finalmente: encheu-se de álcool até morrer de cirrose…
Infelizmente não me foi possível estar no jantar da passada Sexta Feira realizado no Restaurante do El Corte Inglês. Contudo, tive a sorte de encontrar por mero acaso três dos participantes do referido convívio no famigerado "Hot Clube" de Lisboa, onde me encontrava na noite desse dia.Mário Laginha actuava nessa data e um autógrafo dele tem mais valor no mercado negro do que uma foto ao lado do José Couto Nogueira. Não acredito na totalidade do que me relataram, no entanto, por ser a única fonte que possuo, e na ausência de qualquer outra descrição aqui publicada, partilho com vocês esta visão dos acontecimentos. O jantar começou fora de horas conforme o previsto e a conversa decorreu amena durante o início da refeição. Formaram-se pequenos grupos trocando impressões entre si, até que a dada altura houve um tópico que despontou como denominador comum. Foi constatado pela generalidade dos convivas que apesar do número total de inscritos nos cursos rondar as quatrocentas pessoas, este blog é essencialmente povoado por textos de quatro ou cinco elementos. Nomes como Gaivota, Zé da Xã ou Miriam assolaram à cabeça de todos. O facto de nenhum deles se encontrar presente leva-me a concluir que estariam a escrever qualquer coisa para o blog, pois também não os encontrei no Hot Clube. Ainda assim, restam trezentas e cinquenta almas cujo rasto se perdeu para sempre e foi a essas que todos os presentes lançaram o repto de enriquecer este espaço com os seus textos. Parece que o desafio surtiu efeito, pois esta crónica surge como consequência directa dessa provocação. Por que esperam? Não se deixem intimidar pelo débito da Miriam, ou pelos contos da Gaivota. Provem que conhecem mais vocábulos que o Zé da Xã e publiquem os vossos ensaios neste espaço. Já o repasto ia longo quando de súbito alguém denunciou a presença de dois alunos do "curso de poesia" na sala. Gelaram-se os bolos de chocolate nos pratos. O delator demonstrou a sua indignação por termos de recorrer a este método para "compor a mesa" e sugeriu que em futuras ocasiões se optasse por convidar alunos do curso de saladas ou mesmo do curso de vinhos como forma de colmatar as ausências. Pela minha parte propunha antes o recurso à GNR ou a outra qualquer força da lei para obrigar o Zé da Xã ou a Miriam a comparecer no evento, criando assim uma oportunidade para os outros escreverem no blog. Visivelmente incomodado pelas afirmações do "cavaleiro da prosa", um dos alunos visado entregou a Susana Santos um opúsculo com poemas da sua autoria. Susana, erguendo-se em defesa do referido pupilo, declamou bem alto as estrofes impressas, com uma projecção de voz que a todos surpreendeu. Habituado que estou a ouvi-la no sistema de som do Corte Inglés anunciando mais um curso gratuito, lamentei não ter marcado presença no convívio. O Mário nem tocou nada de especial, não me assinou o CD e eu no fundo nem gosto de Jazz. José Couto Nogueira por seu turno, interrogado sobre o seu próximo livro, levantou uma ponta do véu. Consta que desta vez, o nosso professor tem na gaveta um romance histórico baseado na vida do Almirante Pinheiro de Azevedo. Esperamos ansiosamente por ver mais esta obra nos escaparates. Falou também de novas ideias para o ano que se aproxima. Couto Nogueira revelou em primeira-mão a possibilidade de efectuar sessões únicas com escritores convidados. O objectivo seria o de reunir autores e público em torno de uma obra, e conversar sobre o livro de forma informal. Foi pena não estar presente, pois iria sugerir outra variante para o tema. Na minha óptica deveria convidar-se um autor e em conjunto com os assistentes falar-se-ia sobre a obra de outrem. O visado apareceria então numa sessão posterior para discutir também obra alheia, não sem primeiro visionar a filmagem do encontro anterior. O Corte Inglês tem um armeiro no Piso 3 e um parque espaçoso nas traseiras para desagravos. Já quase no final, um aluno cujo nome não me foi revelado, ameaçou ler o trecho dum livro que todos deduziram ser da sua autoria. Perante o olhar perplexo dos presentes, garantiu que a sua leitura não iria ultrapassar as dez linhas. Todos suspiraram de alívio ao perceber que a folha A4 que segurava na mão, se encontrava impressa em "portrait". Após a sua curta prelecção, gerou-se alguma polémica sobre uma das frases proferidas. De facto, a afirmação "o capim chocalhava" não recolheu o consenso de todos. Uma senhora presente garantiu que esse fenómeno foi cientificamente observado por ela na região do Alentejo. Consta que ruboresceu enquanto falava. Pela minha parte posso certificar-vos que o capim não chocalha, mas contaram-me que existe em Amesterdão uma erva que toca xilofone. Também me disseram que a EasyJet tem voos promocionais para a Holanda. Se forem lá, não se olvidem, escrevam! Pedro Pereira
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