Forum dos alunos do Curso de Escrita Criativa do El Corte Inglés
Quinta-feira, 25 de Outubro de 2007
TERRAMAR
Sou feita de mar. E sou do mar, apenas. Não sou de ninguém. Nasci no mar e com ele me criei. É ele que me lava a alma, quando a vida pesa demais.
O rapaz olhou-a com simpatia. O vestido dela caía-lhe pelo corpo, como um jorro de água. E de tão diáfano quase nem a cobria, pensou, sorrindo-lhe. Com a ponta dos dedos arredou um pouco do tecido, descobrindo-lhe o ombro direito. Sorriu novamente. Era azul a alça do sutiã. Como o vestido. Lembrou-se então que, um dia, ela lhe confidenciara que usava sempre lingerie a condizer com o tom da roupa de fora.
Apertou a mão que ela lhe estendia, num gesto de entendimento recíproco. A canícula da tarde não autorizava mais que o exercício da inocência. Fica, pediu o olhar da rapariga, não posso, respondeu o olhar dele. Parto em breve, não sei quando, mas partirei por um caminho que ainda desconheço. E que julgo conhecer, que julgo seguro. Quero arriscar. A minha inquietação não casa com o dado. Atraem-me as incógnitas, o mistério. A aventura e a mudança, pensou, silenciando-se ainda. Procuro sempre a impossível perfeição.
Aqui tens mar, devolveu-lhe o pensar da rapariga. O mar não conhece senão a rotina das marés e nem elas são sempre iguais. E serei eu a tua oferenda. Amar-te-ei com o canto lânguido de todas as sereias inventadas para Ulisses e ainda assim serás livre. Livre, com a liberdade única do mar, que a terra jamais te dará…
O rapaz devolveu-lhe um murmúrio. Um olhar magoado. Indeciso. Pensou na terra e no verde dos campos da sua infância, nos fartos seios da serrania e nos filhos das árvores alheias, paridos de outros, mas que ele cuidara, vigiara, podara, até partir cansado de tudo.
Olhou-a de novo, sem ver. Olhar ausente. Tempo indecifrável. Ela fora âncora, porto de abrigo, promontório onde atracara no acaso de uma maré exaltada. Viu uma ilha temporária de águas cristalinas e areias sedosas. Viu-a sorrir, viu as escamas faiscantes de uma cauda soberba devolverem-lhe uma imagem que o assustava. Teve medo.
Pediu a conta e levantaram-se. Tomaram caminhos diferentes. Ele escreveu-lhe uma carta que ela leu já em mar aberto. E em pleno equinócio de verão, choveu choveu choveu, choveu como nunca se vira chover até então.
E diziam os pescadores da praia pequena que, olhando os céus com atenção, por entre a chuva se veria, sentada numa nuvem, uma sereia que chorava, chorava chorava chorava com saudades do homem da terra.
…Ainda hoje os ilhéus dizem, que o mar é morada di sódade.
Miriam
Terça-feira, 23 de Outubro de 2007
...
ME-TRO-SE-XU-AL
Enfiou-se nas mangas da camisa - risca azul a condizer com o tom da calça. Contou as casas dos botões - para não falhar a entrada de nenhum. E o pulôver a rimar.
Tirou os óculos de sol a condizer. O perfume a fechar. Ao espelho, um último olhar.
Na garagem, mirou os carros com desvelo, cantou um-dó-li-tá, atirou a moeda ao ar para confirmar a escolha, meteu a 1ª e arrancou.
Outro chá em Seteais.
A vida corria-lhe a gosto.
Miriam
Agosto/07
Quinta-feira, 18 de Outubro de 2007
...
FADO
(isto não é um poema)
Mergulharam no silêncio,
na ausência um do outro.
Uma lágrima teimosa escorreu
pela vidraça
desceu à terra, deixou-se engolir.
E a terra tremeu
Com saudades de amar.
Miriam
Agosto/07
Quarta-feira, 17 de Outubro de 2007
Ser poeta
És um poeta! Anunciou vaidoso.
Porém numa chispa de lucidez
Devolvi em natural pensamento,
Se seria a modéstia, talvez,
Que via na graça um tormento.
Ninguém diz ao ferreiro que o é,
Ele sabe-o por detrás da bigorna.
Ninguém clama pelo cavador José,
Que fende a preceito a terra madorna.
Poeta não é rasgar as palavras…
É senti-las. Tactear o veludo da vida
Da epiderme das almas ilécebras.
E amar sem destino a dor perdida.
Poeta é chamar a nós a ternura,
Sonhar e crer que tudo é real.
Desfazer-se em torrentes de amargura.
Sofrer como se tudo fosse igual.
És um poeta, repetiu garboso.
Então sorri…
E humilde respondi.
És um mentiroso!
Segunda-feira, 15 de Outubro de 2007
EROS & TANATHOS
EROS
O poeta sorriu à lua.
Na praia deserta as pedras rolaram, para vê-la debruçar-se sobre o mar. E as gaivotas todas levantaram-se a um tempo, gritando de surpresa. Águas férteis corriam sobre rochas e areia, ante o espanto da natureza.
A lua…
era apenas uma mulher.
…Y TANATHOS
A luz, de um amarelo dengoso, vinha desfalecendo pelo casario, pelas ruas, pelo jardim. O murete tímido apartava as águas ronronantes que vinham beijar-lhe os pés. Era quieta a hora, o repouso estéril do sono. A noite bufava uma brisa cálida.
Despiram-se de hesitações e cautelas. Olvidaram todas as dúvidas. E ali mesmo enlaçados, concederam-se o último dos beijos. O último dos cantos.
…Ao longe, o fio do horizonte degolava outro cisne condenado.
Miriam
Agosto/07
Domingo, 14 de Outubro de 2007
ONÍRICO
Adormeceu a norte, cravando um último olhar nas estrelas que, da janela, lhe apontavam o caminho do sul.
…E sonhou com outros pontos cardeais,
que lhe apontavam tantos outros caminhos de indecisão.
Miriam
Ironia
No acaso do acaso
um caso
de breve ocaso
nasceu.
Miriam
Agosto/07
Domingo, 7 de Outubro de 2007
Amor e Resistência
Este poema é dedicado a um amigo meu doente há muito tempo com esclerose múltipla e que na cama onde passa os dias, luta por viver mais um minuto, mais uma hora, mais um dia, o mais feliz possível. Um exemplo de amor à vida e resistência à dor. Para o Fernando com amizade.
Poema de resistência e amor
Por vales de seda e linho,
Desafias um longo caminho…
De dor, de dor.
Um trilho ímpio, sinuoso,
Amargo, tenebroso…
E triste, e triste.
Entre loas de imenso fervor
Há uma história de amor…
E paz, e paz.
Renasce das tuas entranhas,
Uma aragem todas as manhãs,
De viver, de viver.
És a força, o mar e a terra,
Que em ti frágil, encerra…
A glória, a glória.
Os teus sonhos brilhantes,
São ósculos de amantes,
Sorrindo, sorrindo.
Resistes como um ancião vadio,
À morte num desértico baldio…
Tenaz, tenaz.
Coragem é quem vive assim,
Simplesmente tão perto do fim,
E ama, e ama.