Desligou a tv o rádio o computador, os telemóveis e o despertador. Atirou com o jornal a agenda e o calendário para a goela do ecopapelcartão. Fechou a porta à chave deixando o mundo lá fora, meteu-se num banho de espuma sais colónias e óleos essenciais, fechou os olhos e o coração.
E mentalmente agradeceu ao santo progresso a bendição
da invenção
do botão
de desligar...
Miriam
I. Pretérito Perfeito: amou mas temeu
II. Indicativo: é falso - não apresenta direcção
III. Futuro do Conjuntivo: quem amar depois da hora, chegará mais cedo a nenhum lugar
IV. Condicional: amaria se tivesse ousadia
V. Infinitivo pessoal: des-amar beatamente na paz do senhor
VI. Gerúndio: des-amando com alegria haverá menos dor
VII. Imperativo: des-ama bem, agora e sempre, amen
VIII.Particípio passado: des-amado a pedido e por favor
T.P.C.:
Conjugar o verbo matar em todos os tempos aqui indicados acompanhado de flores e sorrisos. Quem apresentar lágrimas e suspiros será acusado de plágio e impedido de prosseguir os estudos.
Miriam
Contaram estrelas, brindaram aos dias de sol, planearam viagens que nunca iriam fazer. Miraram-se na lua cheia e descarada, como num espelho que não devolvia imagens mas apenas o bafo da vida. Mergulharam no brilho das águas, indefesos e nus como crianças. Esqueceram as horas, ignoraram as folhas do calendário e acordaram alagados em suor, culpados e medrosos como manda a bendita tradição.
Na igreja da vila cantava-se glória a deus nas alturas - que acabámos de matar mais dois ainda vivos contra nós.
MIRIAM
Ontem não foi um dia vulgar!
O sol esteve lá. A praia deixou-nos saborear a sua cálida areia, refrescada de quando em vez, pelas habitualmente poluídas águas do Tejo.
Consentiu-nos que estendêssemos a toalha e nos deitássemos de barriga para o ar, a contar estrelas que nâo víamos...
Mas faltou qualquer coisa a este tão avançado mês de Julho...
Faltou a disponibilidade para o ócio... Faltou aquele calor que enlanguesse os corpos e os torna vulneráveis à proximidade de outro corpo que se deseja escorregue no nosso.
Uma gaivota mais atenta poisou na beira do muro que separa a zona balnear da zona mais urbana e saracoteou-se.
O vento, frio e violento para esta altura do ano, quase arrancava as palmeiras dos oásis fingidos que ainda assim, resistiram.
A «sereia» viu aquilo tudo e foi tomar banho, indiferente e convencida.
Nada mais aconteceu.
Agosto, será certamente, um mês mais convidativo.
Talvez nos encontremos , por aí, descentrados. para lá ou para cá do centro!
Seremos somente excêntricos.
Cada um em sua rota...
O rapaz de riso fundo levava muito a sério a vida e o mundo. Cansado de ser adulto e sisudo, e de tão sério lhe parecer tudo, perdeu-se de amores por uma rapariga que o fez rir.
Descobriu no riso a festa de viver com paixão e loucura, rindo amiúde e com prazer. Ria sempre muito com o corpo todo, como se o riso o vestisse como um fato completo. Ria com sentimento e graça, pondo-se todo no riso que o estremecia de cima abaixo.
Um dia, perguntaram-lhe "de que te ris tanto?". "De ti e do mundo" respondeu, rindo até ao fundo. Os outros olhavam-no com espanto e pensavam "coitado, está perdido", mas o rapaz do riso fundo não estava nada perdido! Estava muito bem orientado, sabia bem o que queria e para onde ia.
Pela rapariga que o fez rir, perdeu o ar que tinha e passou a rir sempre, mesmo que fosse só com o olhar. Começou a viver melhor, a despertar invejas em redor, mas não se ralou nada e continuou a rir sonoramente.
No dizer dos demais, perdeu também a cabeça e, rindo, convidou a rapariga para casar. Ela aceitou a rir, também. E a rir casaram, numa manhã de primavera, sentados numa ravina salpicada de giesta em flor. Tiveram como testemunhas daquele acto de loucura, 20 cabras malhadas e um cão cego. E um padre que chorava a rir, enquanto os declarava Marido e Mulher...
Miriam
Veio do mar o rapaz que ama a terra com fervor. Das entranhas retira-lhe o muco que acaricia com volúpia, e nas árvores abraça ramos sem folhas. Beija-os com tanto ardor que embranquecem e brilham ao olhar, no desejo de qualquer.
Brinca com o esperma da terra, molda-o com precisão-paixão, prende-o com invisíveis fios de carinho nos tensos fios coloridos esculpidos em levíticas formas, por um par de mãos criadas para amar. E pinta em panos virginais gentes, bichos e mitos, como só baião baiano pode: derramando-se em místico amor, enquanto bota um peixe no olhar, um minotauro a namorar, um índio a encher.
Baião baiano veio do mar amar a terra, p'ra ensinar a palavra amor a quem quiser amar.
Miriam
"Não há impossíveis", disse o poeta num fim de tarde, cravando um olhar carregado de palavras nos olhos da rapariga. Ela fitou-o surpreendida, com o ar de dúvida de quem duvida, mas que quer acreditar. Que precisa de acreditar. "Talvez", murmurou em tom inaudível.
Subiram. O ascensor era uma ampulheta: viajaram pela areia sem dar-se conta da vertigem. Quando acordaram do sonho repentino, tinham voltado ao ponto de partida. Corrigiram a rota e atracaram no pico do edifício, extasiados com a paisagem da cidade a cor a luz o rio, as telhas rubras resvalando em cascata pela encosta do castelo, o verde vibrante do arvoredo, o azul impensável das águas. Uma gaivota riscou o céu, asas apontando a direcção dum telhado sobre eles: fado fatum fatalidade, as cordas duma guitarra mal gemida a trinar em pretéritos imperfeitos, conjugados em improváveis descobrimentos...
A rapariga invejou a liberdade da gaivota. Invejou a liberdade do poeta. Seguiu a gaivota com o olhar. Poisou-o no olhar líquido do poeta. Desviou-o para o casario à sua frente e pensou que as janelas das casas "são os olhos da cidade". Que a cidade tinha mil olhos ou mais, mas cegos cegos demais para ver-se cega e vagabunda, perdida de si mesma em todas as partidas sem regresso.
Pegaram nos copos, brindaram não-importa-a-quê e a rapariga cansada do fatum, abriu os braços e arriscou um vôo até à praia dos possíveis. O poeta?
- Tornou-se um pintor de essências em azul.
Miriam