Um manto azul forte e inconstante acariciava com doce melancolia a pequena rampa por onde subiam barcas e frágeis traineiras, arrancadas ao mar pelos pescadores. Fugiam aos inesperados e revoltosos temperamentos de um oceano sempre indomável. O dique de rocha negra e áspera embrenhava-se nas águas, criando uma defesa natural aos avanços violentas do Atlântico.
Logo que a tarde soava no relógio da Matriz, Guilherme Bento descia, apoiado na sua bengala e curvado não se sabe se ao peso dos anos ou das incontáveis fainas marítimas, a pequena ruela empedrada de blocos negros e rectilíneos. Cruzava os homens de pele morena e secos de carnes que por ali deambulavam e atirava:
- 'Tarde, pessoal!
- 'Tarde ti Mito... – respondiam os outros.
Ficavam depois a vê-lo desaparecer por detrás do muro do velho cais, só surgindo quase na ponta. Passo pequeno e lento, cachimbo de cana apagado ao canto da boca, boina em tempos branca cravada na cabeça, pele tisnada por muitas horas de sol e sal, olhos pequenos mas vivaços.
No extremo de um pontão de cimento, paralelo ao dique de rocha, repousava uma pequena pedra. Havia quem dissesse que fora o próprio mar que ali a colocara para que o velho Guilherme gozasse o resto dos seus dias, contemplando o horizonte onde os azuis distintos se juntavam. Vivia só, numa singela casa de um piso, caiada de branco e que adquirira no auge da sua vida de pescador. O que comia ninguém sabia, mas exalava frequentemente de sua casa o aroma característico a peixe frito.
A tarde mantinha-se serena, sem vento. No céu, o anil alternava com o plúmbeo das nuvens. Mas sem qualquer ameaça de chuva. Na enseada entrou uma traineira de casco vermelho forte. Trazia atuns e cavalas. Assim que a embarcação encostou ao pontão os homens saíram apressados. Na ponta repararam na figura mirrada do mestre Guilherme. Alguém tentou gracejar:
- Será que ele ainda a espera?
Os outros conhecedores e respeitadores da história antiga e mal dissolvida pela amargura dos anos, miraram com desdém o autor da graçola.
Mestre Guilherme sempre vivera agarrado àquele imenso mar. As suas primeiras memórias, colocam-no com apenas cinco anos no barco do avô. Num dia de pesca. E que dia... Gorazes, chernes, corvinas e sabe-se lá mais o quê... Um carrego daqueles era uma vez na vida de um homem do mar. Quando a traineira arribou ladeira acima puxado pelos homens, logo surgiu a mãe em pranto:
- Ai desgraçado! Tão pequeno e já nestas vidas. E eu aqui tão apoquentada que já prometi uma vela à Nossa Senhora da Saúde.
O mar viria naturalmente a ser o seu futuro. Primeiro com o avô, mais tarde o pai e finalmente ele como Mestre da velha traineira. Um fado cruel e injusto que ele preferiu, aos bancos desconfortáveis da escola. Um ofício tão implacável que tantas vezes pensou em desistir. Mas quando olhava aquele azul tão negro e escutava aquele som tão claro contra as rochas, tudo se esvanecia e depressa regressava ao remendo das redes para nova campanha.
Anos a fio sulcou ondas e vagas numa vontade intrépida contra o mar. O sol, a chuva e o vento haviam sido os seus companheiros permanentes. Quantas vezes sentira que o seu dia tinha chegado, tal era a tormenta, a engolir de um trago a frágil traineira. Mas Deus ou fosse lá quem fosse, retirava no último instante à imensidão quase infinita do oceano o pequeno pesqueiro e colocava-o novamente no cimo das cristas brancas e bravias.
Já homem feito enamorou-se certo dia de Ana, também ela filha e neta de pescadores. Todavia a jovem tinha outras ideias para o seu futuro e logo que a oportunidade surgiu, embarcou para a América. Um desaire na vida de Guilherme. Uma ferida que nunca soube sarar.
Naquele singelo banco, Mestre Mito – era assim que os mais novos o conheciam – perscrutava o horizonte, em silêncio. A uma milha, pouco mais, um pequeno ilhéu erguia-se do mar como de uma fortaleza se tratasse. Uma milha entre dois destinos. E o mar azul, mar de azeite por agora, entre eles. E uma história ou um mistério por desvendar.
Naquela madrugada, Guilherme aprontou tudo para partir para nova faina. O sol ainda nem despontara quando largou a caminho de um oceano permanentemente em mutação. O vento de norte crispava as primeiras vagas, que rodeavam a embarcação como um novelo. Fugindo às correntes a traineira lutava contra um malagueiro feroz e impetuoso. À direita permanecia imóvel o velho ilhéu.
Todavia sempre que mestre Mito circundava tal rochedo, invadia-o uma sensação de que alguém ali o mirava de um jeito diabólico. Assim o pescador e os seus homens fugiam daquele destino. Porém nessa manhã a corrente parecia mais forte, tentando indomar-se à força dos velhos motores da traineira. De súbito alguém avisou:
- Mestre, não se consegue passar as correntes. Estamos a ser levados para o ilhéu.
- Vira tudo a bombordo e regressamos a terra – ordenou o comandante.
Só que o mar não estava pelos ajustes e mesmo após a manobra, aquele continuava a empurrar a embarcação para o enorme rochedo. Experiente e conhecedor, o velho pescador solicitou via rádio ajuda a outros barcos.
Num instante surgiram diversas traineiras muito maiores e que lidavam bem com aquele mar. Mas o mestre apenas solicitou que levassem os homens para terra. A barca era com ele. Nem quis qualquer ajuda para rebocar a sua velha embarcação, herança de pai e avô.
Respeitando a vontade férrea de Guilherme, os homens passaram a custo para os outros barcos e regressaram a terra firme.
Do cimo da enseada os companheiros viram a luta que o seu Mestre mantinha com as vagas, as correntes e o ilhéu. Alguém conhecedor daquelas fainas, previu com um agoiro:
- Aquele dali já não se safa. A corrente de norte é muito mais forte que o barco. Ainda vamos ter para aí uma desgraça. E aquele homem é tão teimoso!
Conhecia-o bem doutras fainas.Casmurrice era coisa que não faltava a Guilherme Bento. Mas fora essa mesma tenacidade e perseverança que tantas vezes lhe salvara a vida e a demais companheiros. Os olhares viviam aqueles instantes cravados no horizonte, ansiosos e descrentes. A chuva que entretanto começara a cair não fez ninguém arredar pé do velho ancoradouro. Todos admiravam a força de um homem contra a natureza. Mas esta jamais se deixaria domar, mesmo por um velho lobo-do-mar.
As vagas encapelavam-se e rebentavam quase em cima da frágil traineira. Lá dentro o homem só, tentava tudo. O ilhéu crescia, crescia. E o mestre tentava, tentava.
Uma forte onda caiu por fim com violência no convés do barco, quebrando-o por completo. Estava irremediavelmente perdida a guerra. O mestre tentou ainda uma última manobra mas a água entrada já nem saía. Afundava-se finalmente a velha traineira, enxada de tantos cavadores de mar.
Num assomo de força e perseverança, mestre Guilherme só com a água como companhia tentou chegar ao rochedo negro e silencioso. Uma nova vaga arrastou-o contra as pedras, mas ainda assim a sorte protegeu-o, deixando apenas alguns arranhões nos braços e nas pernas.
Já em terra, naquele naco de rocha que ele nunca visitara e que temia, sem nunca saber realmente a razão de tal temor, tentou resguardar-se do temporal. Na aldeia piscatória, quando o mar tragou duma vez só a embarcação todos julgaram que o mestre havia também desaparecido. Os sinos tocaram a rebate naquela tarde, mesmo contra a vontade de alguns amigos de mestre Bento. Dois dias mais tarde, um velho pescador lançou a sua barca e foi procurar peixe para o ilhéu como era seu hábito. O mar estava sereno desta vez e foi com um grande susto que encontrou o Mito, deitado em cima uma rocha, dormitando.
Sem perguntas de ambas as partes regressaram nesse momento à aldeia. Quando chegaram muitos se dirigiram, questionando e congratulando-se com a vida poupada pelo mar.
No dia seguinte, Guilherme Bento aproximou-se do pontão de betão e aí encontrou a pedra. Sentou-se, carregou o fornilho do cachimbo, acendeu-o e mirou o mar com tristeza.
Um dos seus velhos companheiros, ganhou coragem e perguntou-lhe nessa célebre tarde:
- Que procuras aqui, homem de Deus?
- O que perdi! – Voltou secamente. ?
- E o que é que perdeste?
- A minha traineira, a Maria do Céu. Aguardo aqui, pacientemente, que o mar ma devolva ou então que me leve para junto dela...
Ainda tenho 20 minutos. É só pôr o rímel e fico pronta. Está tudo muito bem, nada de rugas, nada de borbulhas, a maquilhagem está perfeita.
A saia podia ser um bocadinho mais comprida, mas que se lixe. Se é para ser, é mesmo assim. Os sapatos... são lindos, altíssimos de verniz rosa. Ele vai gostar. Vai babar.
Vamos lá à última verificação. Cabelo, check, maquilhagem, check, mini-saia e sapatos altos, check, perfume... ui falta o perfume. O da Donna Karan, o que ele gosta. Um pouco de perfume nos pulsos, peito, pescoço e nuca. Perfeito. Tudo perfeito. Só falta vestir o casaco e pôr as chaves na bolsa.
No meu telemóvel faltam 5 minutos para ele chegar. Não posso ficar assim tão ansiosa. Ainda fico enjoada. Vou ver um bocado de televisão. Sempre me distraio e o tempo passa mais depressa.
O que é que está a dar? Ah a Oprah... sobre doenças. Hum... não me apetece. As notícias também não... novelas muito menos. Música! Boa, é isso vou abanar-me um bocadinho para me descontrair. Eh pá estes sapatos são tramados para dançar, deixa-me cá tirar o casaco para não transpirar. Tenho de treinar dançar com estes sapatos, que horror...! Olha a figura que eu faria, nem tinha dado por isso. Ainda bem que experimentei aqui, sem ninguém a ver. Na na na, na na na na... esta música é o máximo!
Está atrasado ele... que estranho não é costume. Se calhar é melhor ligar para ver se demora, se está preso no trânsito. Não... calma, ele deve estar aí a chegar. Olha o aspecto que dá! São 10 minutos apenas. Deixa-me cá sentar e ver se já começou o Jay Leno. Nada...
Oh que seca! Ele sabe perfeitamente que eu detesto esperar. E nem diz nada. Que grande idiota! Bem, vou deixar-me de coisas e enviar uma mensagem a perguntar o que se passa. “Olá. Já tou pronta. Tás muito atrasado?” Enviar... Então...? Ficou pendente? Deve estar a passar num túnel ou assim. Estranho... continua pendente. Vou esperar mais um bocadinho e depois ligo, quero lá saber, estou farta de estar à espera.
Fui eu fazer a reserva em meu nome. Vamos chegar para lá de atrasados. Oh mas que chatice, isto agora já está a passar das marcas. Vou ligar-lhe e pronto. Olha esta agora...?! Agora diz que o número não está atribuído, estou feita. Já me estou mesmo a passar. Três quartos de hora atrasado e sem justificação. Daqui a pouco desligo o telefone e pronto! Não quero nem saber! Eu aqui toda produzida e ele feito estúpido, não aparece e com o telemóvel desligado. Realmente, haja paciência...
Bom, já passou uma hora. E ele sem dizer nada, o parvalhão. Vou ligar à Lili. Sempre desabafo. Olha, também me diz que o número não está atribuído. Estou-me a passar, o que é que se passa com estes telefones todos hoje?
“Tou Ana...? eh pá finalmente consigo falar com alguém, bolas! Então não é que estou à espera daquele palhaço há mais de uma hora e nem aparece nem diz nada, nem atende o telefone...?! Estou-me a passar! A seguir ligo à Lili e a mesma coisa, vê lá, que o número não está atribuído, ou lá o que é... Estou eu aqui toda arranjada porque íamos jantar e já só tenho vontade é de partir a cara a alguém... Vens já para aqui? Para quê? Deixa-te disso, não é preciso, estava só a desabafar. Mas se quiseres aparece. Ele já não deve vir, e mesmo que venha, eu é que já não saio. Palhaçada... Vens com a Sofia? Tá bem. Ligo-lhe eu ou ligas-lhe tu? Ah, ok ligas tu. Então vá, beijinhos, até já...”
-----
“Tou Sofia, é a Ana. Olha, a Maria tá outra vez vestida à espera do Zé Manel. Diz que tá atrasado. E ligou à Lili também. Eu disse-lhe que íamos lá, eu e tu. ‘Bora lá. Já passo aí a apanhar-te. Desce...”
- Quem é que lhe vai dizer desta vez? Dizes-lhe tu, Sofia? Eu já não tenho coragem...
- Ok, eu digo... mas como é que é possível? Já passaram quase 4 meses e ela continua nisto. Todos os fim-de-semana o mesmo número.
- Pois... não sei. Não sei o que terá sido pior. Se eles terem morrido, se eles terem morrido juntos. O Zé Manel e a Lili, juntos! Quem diria... Coitada da Maria. Bom, já chegámos, ‘bora lá então...
AnaGod
As palavras saem à pressa, numa velocidade estonteante; a cortar o vento, a cortar a carne, a rasgar, a rasgar, a rasgar. Flechas e espadas reluzentes, mais rápidas do que consigo pensar. Do que quero.
Pensar.
O latejar do cérebro fura-me a massa cinzenta e eu não quero ser cinzento neste mundo grisalho. Não! Tudo se passa em duplicado, triplicado, numa dose maciça de informação que me obstrui as veias. Quase morro sem a certeza de saber se estou vivo, se alguma vez estive. Vivo. Ou não, pouco importa. A vida não espera por nós e nós também não lhe faremos o favor. As palavras são frenéticas, as frases são curtas. Vivo ou não, a quem importa? Cale-se o testemunho de palavras que ninguém vai ouvir; não há tempo para carpir. Em fábricas de brincar, fábricas de fugir. Vivo não, a alma está morta. A aceleração de palavras que tombam no chão como carros fendendo a estrada em dois, em três, em tantos pedaços de uma só vez - becos sem fim. Imagens breves em flashes, relâmpagos manchando os céus. Aclaram-se as masmorras por detrás dos véus. Tudo fica na retina de quanto alcançam os olhos. Mortos e feridos. Luzes néon a esvoaçarem. Paredes de cimento. Electrochoques. Os raios rebentam no betão. As dores sufocam-me o fato polido. Em loucura insana asfixio. É o rodopio neste carrossel atroz. Tenho de sair.
Sair.
Desta sociedade de pressão avulsa, onde o cérebro sempre, sempre pulsa e o coração, qual canhão, dispara o homem-bala.