I.
Parto contigo no desejo
do regresso
que já tarda.
Voamos no mesmo abraço
sem destino
regressamos a nenhum lado...
II.
Sentir
teu corpo em fogo
a consumir-se
lentamente,
desvalidamente,
em labaredas de desejo,
devorar-lhe as cinzas
e, depois,
enlouquecer!
Miriam
Estava no El Corte Inglés em plena quadra natalícia, na zona de restauração a papar qualquer coisinha quando passa um casal com uma criança de uns dois anos e outra num carrinho de bebé, que teimosamente não passava pela minha mesa, encalhando com as rodas nos pés da mesma. Pimba, cacetada na mesa, pimba cacetada na cadeira. A criança do carrinho desata aos berros, a criança a pé, aos berros desata.
Olho para a frente e dou de caras com o aviso “Zona de Não Fumadores”. Um dístico verde bandeira com as letras brancas e a sinalética de proibição a vermelho. Começo a imaginar um outro dístico que deveria estar em alguns locais, a bem da sanidade mental da maioria dos adultos: “Zona Interdita a Crianças”.
Como o ‘politicamente/socialmente/whatever correcto’ está visceralmente introduzido nas nossas vidinhas plásticas do civilizadamente correcto século XXI, parece mal dizer estas coisas em público. No entanto, e porque sou uma desbocada, estou tentada a fundar um movimento de restrição a crianças menores de, sei lá, 12 anos (?) em alguns locais.
Vejamos: o que pode incomodar mais? Um tipo a fumar-nos para cima enquanto saboreamos a sandocha ou uma criança aos berros e a espalhar Milupa por todo o lado? É quantificável? Dependerá das situações – quantidade/proximidade da emissão de fumos versus o volume decibélico/quantidade de Milupa espalhada – mas temos de convir, que no mínimo é tão ou mais incómodo que o fumador.
E se existem zonas que nos protegem dos fumadores, porque não existirão zonas que nos protejam de outros agentes nocivos à nossa saúde mental?
Mas a mim, para ser completamente honesta, parece-me que até os próprios pais das criancinhas barulhentas e insuportáveis, dariam graças por haverem espaços children free... Para um time outzito.
Deviam haver restaurantes ou zonas de restaurantes interditas a crianças. Nos supermercados, nem vê-las. Ou então estabeleciam-se uns horários, tipo recolha obrigatória. A partir de certa hora não poderiam haver crianças espalhadas por aí.
Era muito mais justo para todos: fumadores, não fumadores, procriadores, não procriadores. Todos diferentes, todos iguais...
AnaGod
(Resposta a Alex, em dia de boa navegação)
Traz sempre boa cor e até deixou de fumar. Mas a família nunca mais a viu. Dizem os amigos que a conhecem melhor, que vive em comunhão com o moinho, deita-se todos os dias embalada pelo sol, que a beija fielmente e levanta-se pela fresca madrugada, contrariamente aos seus velhos hábitos.
Continua a mudar de humor, mas agora menos frequentemente, e é mais fácil adivinhá-la: uns dias espuma de raiva pela condição humana, despeja nas areias todo o lixo que armazenou dentro, gritando "vêem o que fazem? fazem o que são, fazem-nos o que somos!" ; outros, anda contente a cantar pela praia ou vem beijar os pés dos amantes, que a estranham pela mansidão. Em mudanças de lua torna-se verdadeira cruella, gesticula contra deuses e titãs, escancara os braços em abraços assassinos pronta a vomitar traições e pesadelos, grita por socorro, que não aguenta tanta fúria contida à espera do resgate prometido, já tanta vez retardado!
E quando tropeça nas rochas à procura de si, tudo o que ouve é uma voz adamastora que lhe berra ao ouvido: raios, Alexia, tira os olhos daqui! Tanto amar pode matar e nunca morre quem morrer no mar...
Miriam
(Para Alex, por amor ao mar)
Furou as águas provocadoras, com o olhar fundo e negro como uma mina. Esmagou nervosamente a beata no cinzeiro de vidro barato enquanto expelia o fumo com ênfase. Levantou-se da espreguiçadeira, deu uma última olhadela à chávena de café que jazia vazia, sobre a mesinha do varandim, à casita de madeira onde tantas tardes e noites sonhara com o mar, ouvira o mar, respirara o mar. E partilhara o mar. Desceu até à praia, trepou pela rocha, descalçou os botins. Estava decidida: hoje o mar sou eu!
Miriam
O Sol já estava a poente quando um carro verde escuro, deixando o cemitério atravessou a povoação procurando avistar a grande amoreira preta. A viatura subiu a ladeira vagarosamente até chegar ao terreiro, onde se imobilizou. A porta do lado do pendura abriu-se de imediato, e logo após a saída arrebatada de um cão cinzento a atirar para o preto, que correu de pronto na direcção de uma casota quase oculta no meio de tanto mato, saiu uma jovem senhora vestida de negro. Era Marta Algor.
As outras portas também se foram abrindo. O condutor era o Marçal Gacho. Do banco detrás saíram a Isaura Estudiosa com um menino que teria decerto uns cinco seis anos, que logo logo, e ao sentir chão firme debaixo dos pezitos, correu na mecha atrás do cão que, agora sabemos ser o Achado. A Isaura, outra vez viúva, com toda a preocupação que podemos calcular, lá corria atrás do menino chamando pelo seu nome.
Enquanto Marçal fechava as portas da viatura, Marta contemplando a olaria ao fundo - quase toda ela invadida por ervas - dirigia-se calmamente a casa.
Há seis anos tinham deixado tudo aquilo. Era a primeira vez que ali voltava desde então. Pelo chão viam-se os restos dos bonecos, ali colocados na manhã da partida, com o propósito de guardarem todo aquilo.
A filha do oleiro, acabado de enterrar, abriu a porta e entrou na cozinha. A grande mesa lá estava, local de tantos encontros e felizes partilhas. Marta por momentos sentiu a presença do pai à cabeceira da mesa. A comoção apanhou-a. Sentiu as pernas fracas. Sentou-se no lugar tantas vezes ocupado pela mãe e depois por ela, e escondendo o rosto entre as mãos começou a chorar. Marçal ia a entrar, mas ao ver a mulher assim e apesar de querer muito abraça-la, achou por bem deixá-la, por agora, sozinha. Foi ao encontro de Isaura, Achado e Cipriano Júnior. Passado estava o frenesim do corre-corre, estavam, os três, tranquilamente sentados no chão. Ao chegar junto deles Marçal deparou-se com o filho com as mãos todas sujas a brincar com terra barrenta, sob o olhar fascinado de Isaura e Achado. Da forma mais discreta conseguida sentou-se junto a eles.
E ali ficaram, aguardando a Marta, debaixo da grande amoreira que, apesar de mais velha e dos progressos da dita civilização ali continuava, teimosamente de pé.
Baseado em: A Caverna de José Saramago
PP ( post posted): espero que a formatação deste texto tenha saído bem