Nesta altura do ano é habitual ser-mos maçados com os desejos e prognósticos para o Ano Novo dos ditos famosos e colunáveis, os quais enxameiam toda a Comunicação Social, tirando como é óbvio os jornais sérios como o Financial Times , The Times, e o The Wall Street Journal -aqueles que leio -.
Ensopado ainda pelo espírito do Natal, não resisto a retaliar na esperança, que reputo com infelizmente vã, de ser lido, quem sabe por uma Ana Malhoa ou um Cláudio Ramos.
Sendo eu um homem de Direita, vou começar naturalmente por aquilo que me é mais caro – a minha felicidade.
O meu maior desejo para 2007 é ter a grata surpresa de descer à minha garagem e encontrar no lugar do meu Rover com quatro metros e oitenta um Bentley com cinco metros e quarenta. Seria uma notável melhoria na qualidade estética da paisagem urbana, sobretudo quando passasse em frente às paragens de autocarro.
Espero também que haja paz para que os selvagens que abundam por ai não me estraguem o meu bruto carro quando me mudar para a minha casa nova na António Maria Cardoso, nas antigas instalações da PIDE/DGS.
Passando agora para as coisas menos sérias, desejo que Sarkozy ganhe em França porque para Barbie prefiro a Vanessa Paradis, malgré o Johnny Depp e na minha querida Old Albion, o regresso dos good old tories ao Poder. Yes, Prime Minister Cameron.
Num plano ainda menos sério, a ditosa pátria. Espero que me escolham para entregar ao Francisco Louçã o Prémio de Português Mais Irritante, segundo a revista Sábado; que a classe política nacional exija de cócoras a aplicação imediata e irreversível a Portugal do Estatuto do Indiginato, recuperado das Províncias Ultramarinas; que os professores saibam ler e escrever e conheçam as matérias que leccionam; que os alunos não lhes batam; que os partidários do aborto irresponsável comecem por dar o exemplo promovendo o matricídio das senhoras suas mães e o seu próprio suicídio ou, em alternativa, que possa deduzir no meu IRS os abortos que pagar com os meus impostos.
Por último, desejo que a futura terceira ponte sobre o Tejo se chame Ponte Vítimas do PREC e que o Mosteiro dos Jerónimos não passe a ser chamado por Condomínio Eclesiástico MFA/Vasco Gonçalves.
Termino desejando ainda que o amigo leitor leia este texto ao som de “What a Wonderful World” do Louis Armstrong porque gosto que o passado seja parte do presente e do futuro, mesmo quando eu já cá não estiver. Feliz Ano Novo!
"A Arte é um olhar amoroso sobre a vida."
Duchamp.
Mãos. Marfim. As tuas mãos cor de marfim. Os teus dedos longos: esguios, suaves. Suavidade de seda. Nos teus dedos de marfim chegou a reluzir o brilho de um aro - um acordo, um projecto ainda sem talvez.
Era fina e acetinada a pele que vestia a forma das tuas mãos. Os veios, os sulcos, as linhas, caminhos indecisos no destino que - avé feiticeiras e adivinhos - lhes vem engastado, assomavam timidamente sob a tua pele. Fina e acetinada. Talvez porque os poros eram muito apertados, tão apertados que nunca me deixaste entrar neles. E eu só queria invadir-te, invadir-te tanto como tu me tinhas invadido a mim. Não por vingança, mas porque amar(-te) me fazia mar e o mar tudo pode, tudo devassa. E fazia-me grande, tão grande como o mar que te fizeste em mim.
Não me lembro dum gesto teu. Não me lembro duma carícia tua. Das tuas mãos só retenho a forma: queria esculpi-las, modelá-las, reproduzi-las em alabastro, ébano, mármore, o que quer que fosse que as eternizasse e, então obra de arte, poderia imaginá-las no meu cabelo , no meu rosto, no meu ombro.
Das tuas mãos só retenho o momento: segurando o jornal horas intermináveis (eu dizia que "estudavas" o jornal, lembras-te?), repousadas no volante, ou no vértice da tua nuca quando buscavas concentrar-te.
Frias. Eram sempre frias as tuas mãos. E eu nunca soube se os arrepios que causavam eram desse frio em que teimavas em fechar-te, ou do calor excessivo que me assaltava quando as segurava nas minhas.
Diluiram-se no tempo. Já não as posso esculpir. Já não quero esculpi-las. Tornaram-se pó igual à poeira do universo. Das tuas mãos , do teu corpo, do teu tempo, ficará tão somente o que existe já: poeira.
Miriam
Entre 4 e 9 de Dezembro decorreu um curso intensivo (6 aulas de duas horas em seis dias seguidos) no El Corte Inglés do Porto. O autor convidado foi Richard Zimler. Foi uma óptima experiência e creio que muito bem sucedida, embora ache que os cursos fiquem melhor na versão extensiva. (11 aulas duas vezes por semana). No entanto consegui seguir a mesma programação, eliminando apenas a parte de "micro-história da literatura portuguesa" sobre a qual, aliás, sempre tive algumas reservas — não sobre o tema, mas sim sobre a minha "cobertura dos acontecimentos". O resto da economia de tempo ficou a dever-se a não haver mais autores convidados.
Gostei muito de estar no Porto, com especial referência para o Museu de Serralves (onde vou sempre) e à Casa da Música. Quanto a Serralves, é quanto a mim a melhor obra de Souto Moura e as exposições são sempre interessantes. Desta vez trata-se de uma amostra eclética e internacional da década de 1980. Da Casa da música, continuo a achar a arquitectura exterior um bocado brutal, mas os pormenores interiores e a volumetria das salas são de facto extraordinários.O Porto continua a seguir a sua tradição de ter grandes peças dos vários periodos arquitectónicos.
Já está agendado o próximo curso de Lisboa, que começa a 22 de Janeiro.
por Sérgio Figueira
Olho-me ao espelho e vejo-te do outro lado. És a personagem que eu queria ser e não consigo. Fizeste todas as viagens que eu planeei e nunca fiz. Saíste todas as noites durante a minha juventude enquanto eu ficava em casa com medo de enfrentar o mundo. Tens a coragem que eu queria ter e esbanjas o charme que eu jamais possuí. Tens os amigos que eu invejo e passeias a tua figura de “dandy” do século XXI com um toque de James Bond versão Casino Royale, nesse belo descapotável com que sempre sonhei. Nunca te faltou o dinheiro para todos os teus luxos e devaneios e ainda por cima sem precisares de trabalhar porque ninguém teve tanta sorte como tu tens nos negócios, como se tivesses sido abençoado pelo cabrão do Rei Midas.
Por ti passaram toda as mulheres que eu queria ter. Lindas, sedutoras, altas, esguias, de cabeleiras fartas e peitos de Pamela Anderson antes de retirar o silicone. Foram todas tuas, às vezes aos pares, algumas vezes até mais na tua cama, numa orgia que só me acontece em sonhos e dos quais acordo sempre na melhor parte.
Pára de me contemplar desse lado do espelho com ar de piedade e sorriso cínico, como quem quer dar uma esmola, ou, pior ainda, ser solidário. Não quero a tua pena e muito menos a tua solidariedade versão Bob Geldof dos abandonados da sorte.
Sou um filho da puta de um desgraçado a quem a vida virou as costas e ninguém quer saber. E ainda por cima começo a gostar de mim assim. Acho-me graça no meio de tanta miséria. Imagino-me a comandar um exército de vencidos da vida, pronto a repor a justiça no mundo e a retirar os privilégios aos afortunados da existência como tu. Idealizo tácticas para a minha vingança e visualizo a tua desgraça. Vejo-te gordo e sem esses músculos de modelo que humedecem os sonhos de teenagers histéricas. Ficaste careca e perdeste esse sorriso milionário de anúncio de revistas caras. E principalmente, principalmente meu caro, para além de te terem tirado o belo carro com que te passeavas nas avenidas da vida, perdeste o teu atributo de macho, aquilo que te deu maior prazer e fama, ficaste sem o tesão que era a tua coroa de glória e atributo de conquistas sem fim!
Sinto-me vingado e ainda assim sabe-me a pouco. Quero ver-te exposto num daqueles “reality shows” em que se amesquinham os concorrentes em nome da curiosidade e interesse das audiências. Melhor ainda, concretizo um dos meus outros sonhos recorrentes, em que és preso e mandado para uma prisão da pior espécie de um país do terceiro mundo, em que todas as noites do resto da tua existência serás violado por um bando de prisioneiros ansiosos por carne fresca. Ainda ris? Queres pedir-me perdão? Lamento é tarde de mais.
Vou escrever esse livro que nunca li. Para poder fazer a minha moral da história. Que perdurará “per saecula saeculorum”…
Ela foi enviada para uma solitária em Sintra. Ele, desterrado para Pinheiro da Cruz. Fugiu ao encontro da mulher amada, aproveitando uma noite de monumental bebedeira futebolística entre os guardas e só parou em Lisboa. Ainda tinha mais um dia de caminhada até Sintra... entrou num bar do Cais do Sodré para matar a sede e a fome. Uma puta desafiou-o. Não teve forças para resistir-lhe. Ela roubou-o e, como se não bastasse, um conhecido advogado de extrema direita, chocado com o gasto supérfluo, denunciou-o.
A mulher veio a saber da traição poucos dias depois, em entrevista transmitida em directo, a um fotogénico Professor Universitário, preocupado com o estado desta nação. O Correio da Manhã quis entrevistá-la. Imolou-se com o jornal. Levaram-na para a Unidade de Queimados, onde mordeu a mão da enfermeira que a segurava e castrou o médico a pontapés. Conseguiu fugir do hospital com o cabelo ainda em chamas. Atirou-se ao mar do Guincho às 16:48 h do dia 22 de Novembro. Diz quem a viu que, numa das mãos, segurava um boneco de trapos pelo pescoço.
E ele? Na berma da IC19, portanto, ainda na Grande Lisboa, morreu de morte súbita em plena hora de ponta. Mas parece que todas as horas são de ponta na IC19, pelo que não se pode inferir que tenha sido causada por engarrafamento.
No dia seguinte, os quintanistas leram no relatório da autópsia: dia e hora da morte - 22 de Novembro, pelas 16:48 h; causa - asfixia por estrangulamento.
O mar do Guincho passou a ser conhecido por ter poentes de cor vermelho-fogo.
Miriam
Depois do primeiro encontro, nunca mais se largaram. Caixotes vasculhados em busca de iguarias eram, para ela, clubes gourmet em dias de festa. Ele mimava-a com frascos de perfumes rejeitados, caixas de bombons já vazias, embalagens de fumados ainda viscosas do produto - era bom: a gordura serenava o frio e acalmava o buraco no estômago.
Celebravam todas as datas, ainda que vivendo sem relógio nem calendário (ou talvez por isso mesmo). Sabiam que era sábado pela expressão feliz dos outros , domingo pela preguiça das manhãs. Comemoravam, roubando-se beijos à frente de todos e as gentes espantavam-se daquela felicidade desgraçada, enquanto se iam desgraçando nas tramas da abundância. Passavam-lhes de largo, desculpando-se entre iguais com o suposto mau cheiro dos trapos, mas a verdadeira e mais funda razão é que lhes invejavam a in-diferença.
A polícia local veio a saber. Era preciso acabar com aquele desaforo, punir o crime, expiar a culpa de tal afronta - não se pode ser feliz fora dos cânones autorizados...
Prenderam-nos. Espancaram-nos por confessarem uma verdade incómoda: amavam-se incondicionalmente.
Foi-lhes decretada prisão preventiva (como se houvesse alguma prevenção para o Amor! e presos viviam já, na paixão que alimentavam dia a dia; portanto, só lhes retiraram a única liberdade que lhes reconheciam: a de não serem cidadãos).
O juíz descobriu, por uma denúncia do director da prisão, que se escreviam, usando as letras dos pacotes de açúcar. Proibiu que lhes dessem café. Insistiram, agora com as letras dos maços de tabaco que não fumavam e que traficavam com os demais, contando histórias de amor ao entardecer. Foram duplamente punidos: por prevaricação e abuso de poder - tinham semeado sorrisos nos lábios dos que os ouviam.
Ela foi metida numa cadeia perto da serra de Sintra. Ele foi transferido para Odemira. Fugiram, não se sabe ainda como, nem quem os ajudou - os guardas foram ilibados por falta de provas e os processos disciplinares encerrados por caducidade.
* * * * * * *
Contavam os pescadores de Porto Covo que os viram ser levados em direcção à linha do horizonte, por um bando de gaivotas, numa madrugada qualquer.
Miriam
Aterraram na mesa, quentes e estaladiças. "Adoro comida indiana!" "E os páparis?" Corrigiu o acento, pressurosa, perfeccionista, a tentar imitar o empregado pele canela, olhar carvão. Observou. Escolhia atentamente. Ela escolheu apressadamente, distraída com n coisas em redor e também porque não gostava de comer, mas sim de petiscar, saltar de prato em prato, provar de tudo. E de beber. Mas a libação foi um solilóquio e o vinho desmerecia o momento.
Voltou a observar, através do vidro barato do copo. Transparente - opaco - olhar - a cor - o lugar -as cores - os sentidos - sim, ou não. O cérebro a disparar, veloz o pensamento,o corpo controlado. O banco incómodo, alto demais, sentia-se num púlpito a discursar. Horrível, queria estar lá em baixo a partilhar, o pão borracha, os molhos inebriantes - bem vindos os sabores novos, este sabor novo e grato. Assustador. As unhas na defensiva, hoje não trazes verniz, pois não, isso é importante? sorrisos e reticências, Ingmar não te metas, a vida já tem ficção suficiente.
A sobremesa era verde. Dividida. Verde lembrava-lhe algo importante e não queria re-conhecer, mas já isto é conhecer duas vezes, pelo menos. E o repasto estragado com uma água acneica, que horror, não há cozinheiro que aguente tamanha falta. Uf, a refeição arrasta-se, o tempo não (es)corre na ampulheta, já lhe dói o traseiro, farta de estar mal sentada, isto nunca mais acaba para passar ao imediato - esta urgência no viver -, o futuro é agora, que o fim é sempre iminente (o outro já sabia disto, por isso é que inventou a filosofia do instante, não tinha ilusões, coitado, morreu doido agarrado ao cavalo) - carpe diem, imbecil, fazes sempre o contrário do que devias (?) e não há culpa que te valha. Todo o tempo é tempo perdido por uma causa herdada, não sabias?
E a noite estragada por uma guloseima rejeitada, agora já não há, vão fechar para descanso semanal ou ad aeternum, che sera, sera. Vem a conta e tu fazes de conta que não sabias, não sabes, não queres é saber, enterras a cabeça na areia ou no volante, na rua tens vontade de voltar atrás, saborear o que perdeste, mas o tempo é um fio sempre desenrolado para o mesmo lado...a negra com quem te cruzas vai guinchando ao telemóvel que o seu homem quer é que ela fique com a minina para ir ao concerto do Paulo Gonzo, não querem lá ver? sózinho, pois claro, sem ela, onde é que isto já se viu, eles agora também se querem emancipar - e a raiva põe-na a comer uma baga venenosa; humanista ele acorre, a tragédia iminente não se desenrola, salva-se a negra e a consciência, que lindo o momento, assim é um gosto viver, prender o fio, enganar-lhe as voltas - às vezes até deus conseguimos sentir-nos. E agora, adeus, dorme bem, boa noite, um dia destes repetimos. Talvez. Inch'allah moura,ou moira, sabe-se lá!
Miriam