Cindy
A nossa história acabou. Não posso mais olhar a nossa imagem milhares de vezes repetida nos livros, no cinema, e até em invólucros de chocolates e pastilhas elásticas. Suportei quanto pude, mas foi demasiado tempo, quase 300 anos a fazer de conta, a representar um falso amor, um falso casamento.
Sim! Ainda hoje não acredito, como foi possível sustentar um casamento não consumado todos estes anos. Lembras-te como eu te suplicava: - Vamos fazer amor Cindynha, vamos apimentar o nosso conto de fadas. Mas tu, sempre sorridente e trocista, respondias: - Querido, não extravases o teu papel, essas cenas não constam do nosso contrato nupcial. - Não posso ser vista suada e desgrenhada, já basta ao que me sujeitei no passado, sempre suja e enxovalhada.
E eu que te amava acedia durante mais um século à uma vida de celibato. Mas, agora basta!, não posso mais reprimir a minha masculinidade, aliás tenho que te confessar, que nos últimos anos te traí algumas vezes, ligações passageiras, a odaliscas das Mil e uma Noites e a personagens sobejamente conhecidas de outras histórias, que o meu pudor e descrição não me permitem reproduzir com mais detalhes.
Não imagines porém, que a simples ausência do amor carnal, foi o motivo bastante para o meu afastamento. Não, não foi essa a única razão para esta separação. A origem reside em mim, no meu descontentamento, na insignificância do meu papel a teu lado, no desequilíbrio da nossa relação.
Exercita comigo a memória do nosso passado e vê que imagens construímos; Tu sempre e em qualquer situação uma mulher maravilhosa, eu um simples príncipe apagado, sem país, sem vida própria e até sem nome. Olha mais um pouco, Cindy, se tens dificuldade em recordar vê em DVD, ou lê nos livros, vê como só existi para te servir e para satisfazer os caprichos de um autor caquéctico. Ah! Como eu abomino aquela cena do baile, a dançar sempre a mesma valsa, a tal da meia-noite, sem sequer poder falar, ou suspirar, já que também a fala me era negada, para que tu pudesses brilhar.
E como se não bastasse, ainda havia a tua fuga, e depois a parte ridícula de tu seres uma mulher de sapato de número único e eu patético a acreditar e a descalçar-te aquela horrível soca e a colocar-te um sapato de cristal. Recuso-me a repetir mais as mesmas cenas, não quero ser mais esse príncipe não identificado. Eu quero ter uma personalidade só minha, eu quero um papel principal.
Estou decidido, vou abandonar-te, mas não te preocupes, que não te desamparo, já falei com o Perrault sobre a nossa separação e ele concordou ajudar-nos, a ti vai manter-te na mesma história e propõe um “casting” para escolheres um novo príncipe figurante, quanto a mim vai adaptar-me a um novo projecto do realizador Almodôvar. Apesar de não saber ao certo que papel vou representar, já estou a trabalhar intensamente no meu novo personagem, treinando diariamente corridas de saltos altos e expressão corporal, também deixei crescer o cabelo e estou a aprender a maquilhar-me.
Suspeito que me está destinado finalmente um grande papel, quem sabe o de um super-herói, eu sempre ansiei ser um super-herói, daqueles com dupla personalidade, que usam fato e gravata durante o dia, e vestem fatos bizarros e collants à noite, para seduzir a humanidade.
Não me procures mais, provavelmente se me voltares a ver não me irás reconhecer, desejo que encontres a felicidade, adeus Cindy.
O príncipe que em breve terá um nome
Carta de desamor de Sara de Sousa
Minha cara HP 840C,
Escrevo-te porque embora estejas sempre ao meu lado, parece que há muito tempo que as comunicações entre nós estão interrompidas. Sinceramente não consigo entender o que se passou, o que te levou simplesmente a negares-te a imprimir seja que documento for.
Sei que a nossa vida juntos não foi fácil. Estes seis anos foram de duro trabalho e a convivência nem sempre foi pacífica, tínhamos as nossas quezílias, pois tinhas sempre uma maneira muito própria de produzir no papel os documentos que te enviava. Mas mesmo assim trabalhávamos bem em conjunto e acima de tudo éramos felizes juntos. Pelo menos assim o pensava eu…
Hoje em dia recusas-te a ter qualquer tipo de contacto comigo e isso magoa-me. Mas no fundo o que me magoa mais é essa tua indiferença e o facto de desconhecer a razão que te levou a ignorares-me por completo, ao ponto de deixares trabalhos inteiros eternamente na fila de impressão.
Porquê essa indiferença? Achas-me desactualizado, ultrapassado, fora de moda?
Criaste no teu pequeno motor a ideia de que serias feliz ligada a outro computador que não fosse este Pentium III? Sabes que não. Sabes perfeitamente como operam esses novos “aparelhos”, iriam utilizar-te durante três ou quatro meses e depois faziam mais um upgrade e de repente da noite para o dia ficarias com os tinteiros destroçados quando te dissesse que a nova configuração exigia uma impressora mais recente. Irias sofrer com esse abandono, da mesma forma que sofro agora com as tuas atitudes e o que isso implica, ora desinstala HP, ora instala HP, ora volta a desinstalar, ora torna a instalar. Já não há bytes que aguentem esta pressão diária, esta sensação de bloqueio que nem uma ponta aérea entre as nossas prateleiras poderia resolver.
Foste muitas vezes cruel, chegas-te ao ponto de bloquear por completo os meus programas e sabias que isso implicava perder noites e noites de trabalho. Ficava incapacitado de fazer fosse o que fosse durante minutos, o que obrigava que fosse constantemente desligado.
Dizem que tudo tem um fim, que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe, por isso quero aqui e agora terminar este mal que me atormenta profundamente o disco rígido.
Se este cabo que nos une já não é suficiente para continuarmos conectados um ao outro, então termino assim e desta forma um pouco impessoal esta relação que sem quê nem porquê um dia chegou ao fim.
Espero que entendas que a vida não é só branco e preto, como tantas vezes me dizias quando te pedia para colorires um pouco mais as folhas que imprimias, é cheia de tonalidades diferentes que tornam o nosso mundo muito mais divertido.
Não sei o que irá acontecer agora, o que o futuro reserva a nós os dois é incerto, mas espero que aproveites os novos tinteiros que chegaram e te libertes dessa forma de vida soturna e deprimente em que tens vivido.
Provavelmente nunca mais nos veremos, talvez até seja bom, pelo menos sinto bem no meio dos meus fusíveis que a vida continua para além de um disco rígido destroçado e que haverá outra impressora que me irá fazer feliz.
Carta de desamor de Filipa Barreto
Senhor;
Pensei muito antes de lhe escrever esta carta. Detesto odiar, carregar na tecla da raiva, responder mal, ficar zangada, dizer não, desafiar, irritar-me, enfim largar o que me vai na alma. Sinceramente, li na Maria, esta semana, pois, no meu horóscopo. Sou peixe (e não sei nadar, veja lá o senhor como são as coisas...) e, lá, dizia para eu deitar fora a minha raiva: há uma pessoa na sua vida que já não pode ver...diga-lho. Não se contenha, só assim mostrará que é forte e ultrapassará o seu drama pessoal. Não percebi muito bem isto do drama...mas foi de si, sim de si, que me lembrei. Não me sai da mente. Não faz uma ideia, até já contei à SÓninha, a minha vizinha da frente, ela sabe muito destes dramas pessoais, ai que palavrão! Aconselha-me, é boa amiga. Olhe, no outro dia, até a vi chorar tanto, foi o Alfredo, sim o do rés do chão, aquele que faz musculação, deu-lhe uma carga daquelas...ela explicou-me tudo. Só lhe digo tive pena dele. Já fizeram as pazes, e ela até está grávida, dos dramas é ela que me ensina tudo. Quando lhe contei aquilo do horóscopo, disse escreve-lhe já! Assim fiz, a SÓninha é mesmo boa conselheira. Pronto, aqui vai:
Já não o posso ver mais vezes.
Não sabe quem eu sou? Pois nem eu sei quem é. Vejo-o todos os dias, na mesma paragem à mesma hora, apanhamos o mesmo autocarro, o mesmo metro, o mesmo caminho. Já reparou? Sim, sou aquela senhora de óculos graduados, e muito magra, até elegante (diz a madrinha), as cores que visto? Sombrias, gosto do negro, morreu-me a minha mãe, e também do cinzento. Às vezes também uso umas jeans, são da minha irmã, por sinal é muitíssimo boa rapariga e que se preocupa comigo, empresta-me umas roupas mais modernas e quando vamos comer um gelado oferece-me um cone de três sabores. É lá no Colombo, aos domingos à tarde. Sim, sim, naquela geladaria com muitos sabores. O meu sobrinho Zé também gosta de ir ao centro, vai com os amigos, acho que é ao cinema, no outro dia até foi a policia a casa da minha irmã para falar com ele, parece que tinha trazido qualquer coisa para casa, não viu, a minha irmã nunca me sabe explicar muito bem porque é que já não é a primeira vez que a polícia aparece. Também, o que lá vai lá vai. Como vê não dou muito nas vistas. Tenho sempre a mesma mala e o mesmo olhar, a mesma boca, não não reparou, já se vê que não. O nariz, é maneirinho, diz a Rosinha, a minha colega de quarto. É tão linda a Rosinha, se a visse havia de reparar...Tem cá um corpinho bem feito, e aquelas mamas, é roliça, e ri-se muito, só lhe digo que é virgem e tudo, não se chega aos homens. E dá-me cada apalpão nas coxas, olhe até acho bom, às vezes quando está sonâmbula, porque ela dá-lhe o sono muito leve, até me diz umas frases, que olhe aquilo só visto, é uma brincadeira, diz-me ó minha gatinha mostra a...está a ver?, ou vira-te para baixo, para cima, e lambe-me os ...ai nem lhe conto, é por de mais. E eu a fingir que estou a dormir. Passo por mais velha, foi sempre assim, Mas olhe, eu realmente já não o posso ver à minha frente. Mude de chapéu, de olheiras (gostou desta?), de calças, de sapatos, ou de qualquer coisa, eu não sei. É só mesmo porque aquele horóscopo não me sai da cabeça e tinha que descarregar. Aqui, já. Pronto s...
Até amanhã.
Não se zangue, até me fez bem, sinto-me até próxima de si, cai-me no gôto.
Não quer cortar relações comigo? É assim que se diz não é, quando uma pessoa tem dramas pessoais? Até sempre.
A sua Laurinha
Carta de desamor de Ana Maria Cordeiro
Cara Joana
Pensei muito em abordar ou não este assunto consigo até que me decidi pelo “sim”. Não dá mais para fazer de conta que não fiquei zangada. Claro que tem o direito de fazer da sua vida o que muito bem entender mas, nesse caso, faça o favor de não aborrecer os outros. Então a Joana tem o descaramento de me pedir ajuda, opinião, leva-me a visitar a casa nova, atreve-se a dizer-me até que não tem consigo a chave, que está a fazer os contratos de água e luz, pede-me ajuda para saber números de telefone de empresas de mudança e por aí fora e depois diz-me que, afinal a casa é para o seu filho? Mas pensa que eu sou quem? Realmente não tenho rigorosamente nada a ver com a sua vida e dela fará o favor de fazer o que muito bem entender, mas ninguém gosta de se sentir enganado. Claro que vai mudar para onde queira, até pode ser para debaixo da ponte se aí se sentir muito feliz mas, por favor, não engane as pessoas que a estimam, nem as faça perder o seu tempo como foi o meu caso. Mal comparado isto é como se fosse uma história do género: “Ai que bom que arranjei um namorado lindo, com todos os atributos com que nós, as mulheres, sonhamos ama-me profundamente, até é milionário e vive num palácio!” Vai daí a parva da amiga acredita em tudo, apoia-a em tudo quanto é necessário, trata de escolher o vestido de noiva, ajuda a encomendar a boda, faz lista de convidados e tudo o mais; a data do casamento está marcada e na véspera a Joana diz-lhe que afinal o noivo não é bonito, não a ama, não é milionário e até vive num bairro de lata, mas está feliz na mesma. Ok! Pronto! Mas terá de convir que isto não se faz!
Afinal a casa é para o seu filho, a Joana fica com a dele (óptimo, maravilha) mas podia ter dito.
Para mim, a grande aprendizagem é que, realmente, não tenho nada a ver com a vida de ninguém e que a amizade é um bem muito precioso que aguenta tudo e ultrapassa todas as dificuldades e provas. Não seria no entanto necessário passar por estas maçadas todas para saber isto. Poderia ter percebido mais cedo, sem ter de fazer listas estúpidas de convidados e cardápios de boda para gente que não tem sequer uma refeição.
Desejo-lhe as maiores felicidades na casa que não é nova. Espero que o Pedro esteja feliz na “sua casa” nova e gostaria que, por favor: nos tempos mais próximos não tentasse falar comigo. Isto passa rápido porque aos amigos tudo se perdoa ou não se é amigo. Peço-lhe que deixe passar um tempinho para amainar o meu ânimo e a minha patetice. Peço-lhe também que não haja uma próxima vez para enganar amigos. Omitir também é mentir e o engano foi para si, não para mim nem para outras pessoas a quem tenha por acaso ocultado a verdade.
Se o caso era não ter dinheiro para a renda, dizia, mas chegou ao cúmulo de permitir que eu me oferecesse para emprestar dinheiro para a mudança e que andasse a ver pormenores de móveis! Com franqueza: fiquemos mesmo por aqui.
Até qualquer dia e felicidades.
Por favor não disponha
Carta de desamor de Luis Filipe Carvalho
Quase inconscientemente me deixei adormecer. Quase me deixei virar do avesso, até que me decidi escrever esta carta que será a primeira de mais nenhuma.
Vai, espero eu, pôr fim a uma infindável agonia que de tanto se nos apegar acaba por ser parte de nós e apelar a sentimentos de vingança e outras coisas más que, sub-repticiamente, vinham tomando conta do meu ser, diria que violentamente me foram possuindo.
Agora, sinto-me em paz comigo, sinto que foram ultrapassadas todas as questões que, por mesquinhas que eram, foram abandonadas à sua sorte. Como todas as coisas más e mesquinhas, precisam de um corpo e de uma mente que lhes dê guarida para se agarrarem à vida e se alimentarem de si próprios, sem esse corpo e essa mente morrem sós e abandonados.
Acabam definhando no deserto da indiferença de que sou, agora, possuído e em que a única referência a alguém que já foi um “ti”, um “tu”, um qualquer coisa mais me perpassou, em velocidade de anos luz, pela memória dos bons momentos, indo alojar-se no longínquo “para lá do esquecimento”. Local para onde remeto tudo o que é mau e no qual nem sequer me atrevo a vasculhar a mais pequena recordação.
Cansei-me da tua procura incessante de acesso ao “patamar da ignorância absoluta”. Aquele em que à força de se tentar atingir se acaba por esquecer o que de melhor a vida nos pode dar, e não é o poder nem sequer o dinheiro. Da tamanha e desmedida ambição restou um buraco negro no lugar do coração. Nada lá cabia, excepto o acumular de poder, riqueza e outras proezas, mais ou menos artificiais, com mais ou menos cambalhotas pelo meio.
Estavas cada vez mais só, sem o notares. Afastavas todos os que ainda pensavam trazer-te à luz da verdadeira amizade, insultavas e espezinhavas, não sentindo que, a cada dia que passava, mais te afastavas de todos e de tudo. Estavas só com a cegueira da tua ambição e tinhas tudo o que querias. Na verdade não tinhas nada, estavas só, com o efémero o poder que ambicionaste e com um resto de vida sem sentido.
Para mim chega. Acabou, vou-me embora e não volto mais.
Quero voltar a ser e a sentir. Quero olhar para o longínquo, ver o mar, sentir as sensações boas da vida, verter uma lágrima pelo canto do olho, arrepiar-me e ter até pele de galinha nas situações mais sentidas. Quero ser eu. O humano sensível que sempre fui.
Desisti de ser o preocupado da vida, deixei de me importar com ameaças, enxovalhos e outros que tais. Agradeço a forma como, apesar de tudo, me mostraste o verdadeiro caminho. Obrigado.
Sou eu em paz, interior e envolvente, muita paz e com pena, muita pena que um dia, por um qualquer acaso da vida, te revejas num espelho que de tão pouco uso, se esbateu no seu brilho e só devolve uma imagem baça e difusa… a tua imagem. Adeus.
Carta de desamor de Hugo Vinagre
Está a chover torrencialmente. Tal como daquela vez em que ficámos naquele bungalow do Parque de Campismo do Guincho. Lembras-te? A praia ainda ficava longe e estávamos a ver o mar quando caíram as primeiras pingas. Chegámos ao quarto encharcados, atirámos a roupa para um monte e passámos a noite a fazer amor. Pela pequena telha de vidro viam-se de tempos a tempos relâmpagos e, naquele momento, o mundo éramos só nós. O maravilhoso da nossa relação é que os dedos das minhas duas mãos não chegam para contar momentos como esse, com uma intensidade maior do que tudo o que conheço, ao longo dos seis anos em que estamos juntos. Tu dizes-me o mesmo, e ainda ontem, quando te telefonei do hotel em Marselha, confessaste que querias fazer bebés comigo…
E eu também queria, até há duas horas atrás, quando cheguei a casa e me atirei estoirado para cima da cama e senti algo a enterrar-se nas minhas costas. Enfiei a mão por baixo dos lençóis e de seguida apontei o comando para a televisão. Só que o comando não era um comando, era a merda de um telemóvel, por sinal diferente da merda do teu telemóvel cor-de-rosa. Espero que o vizinho do primeiro andar não me processe por violação de privacidade, mas não resisti a ir ver as mensagens. Agora que estou a par de tudo, reflecti calmamente com o Jameson e uma pedra de gelo como companhia, concluindo que não quero aguentar a vergonha de uma traição. Não quero encarar o homem do café a dizer-me Boa tarde com um sorriso nos lábios e eu sem saber se ele está a ser simpático ou se sabe que me puseste os cornos e está a rir-se de mim. E muito menos encarar os meus amigos, com pena de mim (E EU NÃO QUERO QUE TENHAM PENA DE MIM!!) ou pior os teus amigos, a pensarem que eu não te devia dar com ele com a frequência devida
Fica a saber que nestas duas horas também tive tempo de esvaziar a mala e atirar lá para dentro a tua colecção de cds. Rendeu 79 euros no Cash Converters, com que comprei um belo charuto que estou a fumar neste preciso momento. (sobraram 12 cêntimos, podes tirá-los do meu bolso direito).
Mas o principal e meu único problema é que, além de não conseguir saber que os outros sabem, eu sou Leão, e os Leões são os maiores. Não consigo não ser o maior. E é por isso que não podes acabar comigo. Porque vou eu acabar comigo. Uma vida de ódio e sofrimento não são para mim
Mas vou com um sorriso. Cada vez que chegares à porta do prédio vais lembrar-te de mim, de como és uma vergonha para a humanidade (querias fazer bebés comigo e com o outro ao mesmo tempo, minha vaca?) e vocês, se ele não te der com os pés entretanto, vão ter que vender as casas para me tentarem esquecer!! Sempre que estiveres em cima dele com os olhos fechados vais ver a minha cara, sempre que estiveres de gatas, vais lembrar-te de como eu te agarrava e eu vou estar enterrado ou cremado, faz o que quiseres, com um sorriso nos lábios.
Clico no enviar, dou 4 passos, subo ao parapeito e mergulho.
Director a dizer-me que tenho que me esforçar pela empresa, nunca mais
Filas de trânsito nunca mais Contas para pagar…
E pensar que sempre te fui fiel ODEIO-TE! CONSEGUES SENTIR A DOR?
Ps: quando vim de comprar o charuto estacionei no passeio, mesmo por baixo da janela do nosso quarto e vou cair-lhe em cima, que o meu MX-5 não é para esse cabrão conduzir
“Carta de desamor” de Carla Bernardino
O céu acordou exactamente como no dia em que te vi discutir com o meu vizinho de cima enquanto estendia a roupa da ginástica que tinha deixado a lavar durante a noite. Ele tinha razão, vinha da direita. E a minha dor, resultante de um salto mal dado na aula de ginástica que tinha a capacidade de me fazer esquecer de tudo e todos, não diminuía mesmo depois de uma noite bem dormida.
Aliás, a minha dor agudizava-se à medida que a vossa discussão aumentava de volume e agressividade.
Sentei-me. Voltei a deitar-me. Não melhorou. A policia chegou ao mesmo tempo que a ambulância.
Até o enfermeiro se sentiu acidentado, coitado. “Que exagero que era a ambulância”, “que é um gasto do dinheiro que damos ao Estado completamente ridículo”, “que é por estas e por outras que o pais está como está”. Até que percebessem que a ambulância não era para o acidente, dava tempo para socorrer para aí uns três feridos de guerra ou fazer umas quantas reanimações.
Nunca tinha andado de maca. Não gostei, especialmente porque não fui eu que tranquei a porta. Quando a ambulância se fechou e começou a andar, já ouvia lá fora:”Assassino! Assassino!!” Sentia fome, ainda não tinha tomado o pequeno-almoço, logo não poderia estar morta. Conclui que moro numa zona estranha e que assim que pudesse deveria mudar de casa. Decidi pensar nisso depois. Talvez o tenha feito durante as 6 horas que estive à espera da minha vez nas urgências do Hospital, não me recordo. Mas recordo-me que me afligiu e muito!, durante esse tempo, a chuva dantesca que começou a cair assim que chegámos ao Hospital, e que eu tinha deixado a roupa estendida no arame. Que azar!
A minha vez chegou. “É melhor fazer um raio-x.” “Passemos à ressonância.” “Acha que ainda há tempo de fazer o T.A.C. antes da operação?”
OPERAÇÃO?OPERAÇÃO???? Que o telefone toque e seja do emprego a perguntar onde estou, que mais uma vez vou chegar atrasada, e que a desculpa da greve dos autocarros já não pega!
OPERAÇÃO??? “Sim, o quanto antes!” Aaaah… Posso ligar à minha mãe a dizer que afinal hoje não vou lá jantar?
Uau.. É bom estar deitada e ser empurrada a toda a velocidade por estes corredores fora. Faz-me lembrar quando era pequena e brincava com o meu irmão aos carrinhos de rolamentos.
A LUZ! Fogo! Ao menos desviem-me isso dos olhos, sim?! E um sr. veio calmamente falar comigo: “Então está bem disposta?” “Claro!Não poderia estar melhor!” “Mora onde?” “Nem me lembre..” “ Vou-lhe só dar aqui uma coisinha e o doutor ainda vem falar consigo..” Senti-me desfalecer ligeiramente. Mas quando o doutor chegou vestido todo de azul, apesar de ter aquele barrete ridículo, não havia duvidas! Eras tu!! O culpado!!!!! Adormeci. Passados 6 meses o meu ex-vizinho telefonou-me a pedir para ser testemunha de defesa. Hoje escrevo para te dizer que este acidente para mim acabou. O acidente que não sabias como realmente começou. O céu estava assim.
“Carta de desamor” de Cristina Augusto
Aileen Wuornos, prostituta e serial killer, após 12 anos no corredor da morte, foi executada no dia 9 de Outubro de 2002, na Prisão Estadual da Flórida, em Starke - EUA.
Ao longo de toda a sua detenção, escreveu cartas a Selby, uma mulher com quem manteve uma forte relação de amor. Estavam juntas na altura da sua detenção. Selby, nunca respondeu às cartas de Aileen,. Esta é a última carta de Aileen para Selby.
Flórida, 8 de Outubro de 2002
Querida Selby,
Esta é a última carta que te escrevo. Tenho-me interrogado pelo teu silêncio, pela tua determinação obstinada em nunca me escreveres uma palavra que seja, já lá vão 12 anos, desde que fomos separadas, e os dias aqui são mais longos que aí fora acredita.
Tenho tido algumas visitas, há um jornalista determinado em contar a minha história, ou direi a nossa? E por ele tenho sabido que estás bem, apesar do teu silêncio.
Nas noites que aqui passo, sem fechar os olhos, tenho pensado em toda a minha, nossa, vida. Fui tão feliz contigo, foste a única pessoa a ter um gesto humano para comigo a mostrar-me o que é carinho.
Vou ser recordada, como um “monstro”, mas isso não importa, espero que quando falarem de mim, de ti, não nos pintem apenas a preto e branco, sei que não houve cor de rosa, mas cinzento houve com certeza...
Não me arrependo de nada, matei aqueles seis homens, e mataria de novo, por mim, por ti, por todas as mulheres que sofrem abusos nas mãos dos homens! Estou consciente, e sei que não errei, todos eles mereciam morrer.
Acima de tudo sou uma pessoa, boa ou má, sou humana, e sei que não vou escapar da sentença, ou não estivéssemos também em período eleitoral.
Mas tudo isso não me interessa, sou filha do ódio, da violência, do vandalismo, em resumo sou filha de uma sociedade podre! De um pai que abusou da filha, de uma mãe ausente, de um irmão que me fez um filho, mas tudo isso não dói tanto, não me corrói tanto como o teu silêncio e a tua ausência Selby...
Assassinei homens que me tentaram violar e sodomizar, agredir também, e se eu estava com eles era por ti Selby, quando os teus olhos tristes me pediam dinheiro que não tinha, quando tu própria me arranjavas os clientes que nos sustentavam, e agora Selby? Quem te sustenta? Estás à espera da minha morte, para venderes a minha história Selby? Em todos estes anos, sofri com o teu silêncio, com a tua ausência, e amanhã é o dia D, o meu dia, e Deus me ajude, vou mas regressarei algum dia, de alguma forma, e matarei de novo, farei justiça mais uma vez, mas acredita Selby, que não me esquecerei de ti, quero te dizer, que até ao último momento esperei pela tua presença, física escrita não importa, esperei, desesperei, sobrevivi, mas agora chega Selby! BASTA! Este é o meu último adeus e dirijo-me a ti, como sempre, de coração nas mãos...
Sou eu que termino o que quer que entre nós tenha existido, fui eu a justiceira do nosso amor, e tu és apenas pequena, mesquinha e cobarde! E mesmo que eu não volte Selby, como vais tu continuar a viver? Quantas ou quantos vais tu enganar mais uma vez? Para que te sustentem, te amem...Até quando Selby?
Já não sei o que é sentir, estou vazia, exausta, este é o meu último adeus, e é para ti Selby, com todo o meu amor e ódio também.
Até sempre!
Aileen
Nota: esta carta é pura ficção, mas todos os factos relatados, da vida de Aileen, são verdadeiros.