Forum dos alunos do Curso de Escrita Criativa do El Corte Inglés
Segunda-feira, 31 de Julho de 2006
lisbon revisited

 

Lisbon Revisited (Alexandra Gil)   

 

O poeta regressa à cidade. Está cansado. A eternidade é uma maçada. Valha-lhe este domingo em que os deuses lhe concederem a graça de se fantasiar de mortal. Restam algumas poucas horas para que comece um importante jogo de futebol. Ameaça chover. Mesmo assim, as ruas estão cheias de gente que, tal como os fantasmas, não têm clube e se julgam imunes às constipações. Mãe, é o Charlot, grita um miúdo mascarado de uma dessas personagens de BD que o poeta não teve tempo de conhecer. Pois é, está mesmo parecido, responde a mulher gorda. Por instantes, chega a crer que lhe dói o esquecimento. Mas os espectros não sentem. Há muito que queimou os poemas, rasgou as memórias e cobriu de traços negros todas as linhas das cartas de amor ridículas que guardara na gaveta. Já não sabe quem foi. Tão pouco o que é. Olha uma estátua de bronze num café do Chiado. Devia ser alguém famoso, pensa. Que apesar do vazio de não sentir, resta às almas penadas a maldição do pensamento. Surge-lhe uma imagem ténue que não entende. Tão desfocada como as fotografias que os turistas tiram abraçados à figura do homem de chapéu, a fingir que bebe café na esplanada. Segue o seu caminho, passos largos e apressados. Que na cidade que foi sua e mesmo num domingo, o relógio corre sempre veloz, sobretudo para um fantasma a quem restam poucas horas de falsa vida. Desce a rua e vira numa dessas transversais íngremes com uma igreja. Chega a passar-lhe pela ideia entrar e terminar a visita a Lisboa num acto de conversão. Mas eis senão quando os olhos se fixam num cartaz colado na porta num desses locais da moda tão brancos e estéreis como a sua nova morada. Lisbon Revisited… (texto dedicado à Inês, ao Zé, ao Riba e ao Luís, autores da exposição do cartaz)

 



publicado por Perplexo às 18:52
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Quinta-feira, 27 de Julho de 2006
Disneyland 1 - Louvre 0

Ah que saudades do tempo em que brincar era apenas isso… brincar, mais nada. Brincar era descobrir coisas à toa, era perceber que há coisas que fazem barulho se lhe tocarmos, que há outras que nos magoam e nos fazem chorar. Brincar sem propósito, sem pedagogia implícita, sem regras de manuais.

Brincar com os filhos hoje em dia parece o “Dia de Treino” mas sem o Denzel Washington. Tudo tem um motivo, um duplo sentido, sempre com o intuito de despertar e acelerar as suas capacidades sensoriais, com brinquedos “educativos” e que “estimulam” escolhidos a dedo pelos pais detentores do grande saber. Mas educar não é uma ciência exacta. Nessas sim, como o nome indica, há que seguir o procedimento exacto das coisas, juntar moléculas e átomos na correcta proporção, misturar tudo em relação causa-efeito, porque o efeito depende da exactidão do método. Na vida, felizmente, não é assim, e muito menos nas nossas relações com os outros – onde se inclui a educação dos nossos filhos.

Fico chocada com coisas que leio e oiço. Como uma colega hilariante a contar-me que a prenda de passagem que deu ao filho de 7 anos foi uma viagem a Paris….. “porque ele anda doido com o código Da Vinci e queria muito ir ao Louvre”. Eu repito. 7 anos. E queria ir ao Louvre. Mas alguém acredita nisto ou que isto faça bem a uma criança?? Qual é o problema da Eurodisney?? É bem mais saudável, aliás, é o sonho de qualquer adulto que se preze (admito)!

Neste regime de educação by the book, ao contrário do que pensamos, não fazemos dos nossos filhos melhores pessoas. Fazemos clones de pedagogia barata, personificações das nossas próprias expectativas, tornando-os intolerantes para com a diferença e incapazes de reagir à mínima adversidade. Os pais decidem como brincar, a que brincar e muitas vezes a que idade brincar ao quê, lutando muitas vezes contra a própria natureza “inconveniente” da criança.

Claro que não defendo a total anarquia educativa, e acho que a disciplina é dos valores mais importantes a transmitir, assim como o respeito e muitos outros. Mas prefiro ver pais que se moldam aos filhos do que filhos que se moldam aos pais. Os valores transmitem-se por “contaminação”, não se ensinam a nosso bel-prazer. Pais tolerantes criarão filhos tolerantes, assim como pais intransigentes criarão filhos intransigentes.

Porque, em última instância, é a vida que nos ensina. Ou não é verdade que todas nós, por exemplo, quando chegou a hora da nossa "primeira vez", nos soubemos desenvencilhar… e não foi preciso as nossas mães terem brincadeiras lúdicas sobre o assunto connosco ou sessões de treino, ou brinquedos da Chicco para nos estimular…..

Eu repito….

7 anos… E queria ir ao Louvre….

32 anos….. e eu queira ir à Disneyland….


Susana Sena Lopes 


 


 



publicado por Perplexo às 23:34
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a piscina azul hockney ( foto de alexandra gil )


publicado por Perplexo às 10:31
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Bons, mas anónimos...
Façam favor de escrever os vossos nomes na primeira linha! Isto está a ficar muito caliente, mas não tem graça nenhuma não saber quem são os autores. Quem já postou, por favor vá ao editor para colocar o nome. E continuem!


publicado por Perplexo às 00:52
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uma piscina azul hockney - a retaliação

 Eis a continuação possível do texto anterior...  (o autor que se acuse) (by alexandra gil)


 


- tem horas que me diga? é ela. reconheço este tom de voz sussurrado. esta mesma pergunta que há tanto tempo ela me fez, junto à piscina, quando ainda nos tratávamos por você. nunca o esqueci. ela está aqui. a minha quase-lolita, a cabra que me rogou uma praga, me destruiu a vida na maldita noite de setembro na casa dos barcos. aquele encontro adiado que servira a tantas sessões de masturbanço foi a minha ruína. o fim da minha apregoada masculinidade. podia ter sido mais uma queca, mas não. foi a última. agora sempre que engato uma gaja, não consigo evitar a imagem dela, inerte e silenciosa, enquanto eu me vinha. três vezes, se bem me lembro. ela ali deitada, de pernas abertas, com ar de indiferença perante a minha paixão titânica. é essa imagem que me assombra desde então. e nada consegue evitar as crises de impotência. tentei o viagra, psicoterapia, mezinhas de ervanária e de bruxaria, putas finas e das outras. e também homens. cheguei a pensar que me tinha passado para o outro lado. mas não. estou condenado a dar uso aos meus dotes de mãos e língua e a muita lábia para convencer as parceiras de que o que se não passa depois é resultado do stress da profissão. agora, passados dez anos, tenho a chance de lhe atirar tudo à cara, de a culpar por tal maldição. – desculpe, mas tem horas ou não? tiro os olhos do jornal. a freira à minha frente, sorri. – valha-me deus, como estás acabado…
  

**********************************************


-tem horas que me diga? o comboio deve estar mesmo a partir. e o homem continua a ler o jornal, sem responder. deus me perdoe, mas faz-me lembrar o quarentão amigo dos meus pais que engatei, pouco antes de me entregar ao senhor. foi na piscina num dia daqueles quentes de agosto. achava-lhe piada, como achava a todos os outros amigos da família, que lá iam passar os domingos. também ele não tirou os olhos do jornal. depois não conseguia era tirar os olhos de mim. uma noite, alguns verões depois e enquanto todos discutiam a situação política mundial, arrastei-o para a casa dos barcos. mais por curiosidade que por tesão. não era o primeiro, mas foi o último. não senti nada. ele mordia-me toda, besuntava-me de saliva com sabor a tabaco e whisky. e eu não sentia nada... o porco também não se veio. mas eu estive à altura das divas porno. deus me perdoe. na tarde seguinte fiquei noiva de um rapaz de boas famílias com quem deveria ter casado no inverno, como faziam as meninas bem comportadas. mas a noite da casa dos barcos não me saía da cabeça, sobretudo quando a minha mãe falava dos deveres matrimoniais. não cheguei a casar, não mais aticei os amigos da família. não fora talhada para aquilo. não gostava de sexo. acabei por entrar para um convento, onde abro apenas o coração.– desculpe, mas tem horas ou não? o homem tira os olhos do jornal e fixa-os nos meus, sem mostrar surpresa. - Valha-me deus, como estás acabado – sorrio.   

a.gil



publicado por Perplexo às 00:42
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Quarta-feira, 26 de Julho de 2006
uma piscina azul Hocney

 


Uma piscina azul Hocney
 ( texto inspirado pela fotografia “A piscina” de Alexandra Gil ) 
Por Nuno Ribeiro

 


 Esta poderia ser uma piscina azul Hocney. Com a diferença de que no meu imaginário não há litle boys, only litle girls.Vem-me à memória aquela música inenarrável do Maurice Chevalier “Thank even for litle girls”. Ou a outra, pelos menos tão atroz do Júlio Iglésias, “De niña a mujer”… Cruzes!Na minha vida sempre houve litle girls, se bem que já na idade do consentimento. E ouve uma em especial.Conheço-a desde a pós-puberdade, mulherou-se à minha frente. Sempre houve um certo atrito entre nós, uma crispação que mascarava um desejo. (Agora entra o Paulo Gonzo a cantar os “Jardins Proibidos”.)Soube sempre que o seu desdém para comigo era uma forma de se dar a mim. E como podem ser cruéis os eleitos pela deusa juventude.Durante o resto do ano, a coisa passava-se bem. O pior era o Verão. Torturava-me com a sua nudez autorizada pelo relaxar dos costumes, pavoneando-se à minha frente com um bikini ausente, cujos despojos faziam as vezes de um mero tapa sexo. Atrás, o fio dental fazia aquilo que eu lhe queria fazer, enfiando-se entre as suas nádegas cobrindo o seu sexo.Deitada de costas, à beira da piscina simulava assim uma nudez inclemente. E ria-se, vendo o efeito por demais evidente que provocava em mim.O meu desejo por ela alimentava-se apenas da sua juventude indecente. Bem vistas as coisas, até nem era nada de mais. Peito talvez 34, nem alta nem baixa. E já com umas assassinas estrias de celulite. Nada de mais.Mas como eu a elogiava! Uma erecção é o maior elogio que um homem pode fazer a uma mulher…Sou um pobre lobo de Ray-Ban, uivando nos afrontamentos dos meus 40 e tal anos anafados. Sou um Fausto a quem lateja, ainda, o falo sequioso pela sua Margarida.Dizia o Goethe que a juventude é uma bebedeira sem vinho. E eu embebedo-me com ninas no alvor dos seus vinte anos. Vinte anos e a flor do meu desejo, da minha gula, entre os dentes.A carne rija, a pele esticada, a ligeireza etérea de quem se preocupa com quase nada. Talvez só em combinar o bikini com a saída de praia.Troquei o Volvo por um Porsche, à cata de uma vulva nova. A dela ou a de outra qualquer nina-troféu.Apetece-me prova-la. “Carne fresca para Drácula”, sempre adorei este título.Até que um dia, seja por força das constelações, tédio, caridade ou o cansaço desde jogo de rata e gato, a coisa aconteceu. Provei-a, devorando-a com a sofreguidão de um guloso numa loja de doces. Um perfeito alarve.Foi uma decepção. Lembrei-me daquela velha anedota segundo a qual a diferença entre o cadáver de uma mulher e uma inglesa na cama, é que o cadáver é menos frio.Foi-se o sonho que sonhei, ficou o vinho seco e amargo da realidade. Nunca mais quero concretizar um sonho. Nunca mais.
 

 Estou deitada, semi-nua à beira da piscina. Esse azul tão turquesa e transparente poderia ser roubado a um quadro de Hocney, sem os rapazitos, claro.Gostei sempre de homens mais velhos, nunca com menos de 40 anos. E nunca tive dificuldade em despertar a gula da brigada do sal e pimenta. Mas houve um em especial.Conheci-o, já não sei por meio de quem, aos 16 anos. Todos pessoas do mesmo meio. Férias na mesma praia.Desde o primeiro momento senti o seu desejo por mim. E claro que com a crueldade dos meus 16 anos não resisti a tortura-lo, à maneira de quem arranca a cauda à lagartixa.Durante anos, brinquei com ele um jogo de sub entendidos. Tocata e fuga, como se diz na ciência da composição musical.Fi-lo trocar o Volvo por um Porsche apenas com a insinuação de que gostaria de ser comida dentro de um. Tolinho, tolinho!O melhor era o Verão, servindo-me da ausência de roupa para o fazer ficar visivelmente excitado. E como era grande o seu embaraço com as suas erecções.Deitava-me de costas, fingindo dormitar à beira da piscina. Tocava-me. No peito, no rabo, a mão dentro do fio dental. Depois olhava para ele e ria-me.Um dia aconteceu. Fiz-lhe a vontade. Deixei que me possui-se. E ele, simplesmente bloqueou. Despachou o serviço e foi-se. Mais valia não ter acontecido porque o sonho desfeito pela realidade não é um reflexo num olho dourado.


publicado por Perplexo às 18:10
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Música Colorida

Escrito por Manuela Crespo



 

            Marcelo amanhecera suado com um peso no peito. Sentia o corpo dorido, como se um camião o tivesse atropelado. Via tudo negro, no verdadeiro sentido da palavra. Os objectos em sua volta estavam escurecidos, como se o quarto estivesse na penumbra. No entanto, a luz entrava pela janela escancarada. Foi uma percepção breve. Aos poucos a luz foi penetrando nos seus olhos e na sua alma. A angústia foi esmorecendo à medida que o mundo se iluminava, qual fim de espectáculo que a luz devolve à realidade! 


 

Finalmente sentiu o corpo mexer-se. Sentou-se na cama com as pernas pendentes sobre o tapete, olhando demoradamente em seu redor e apercebeu-se de como tinha estado imobilizado por tudo se resumir a uma cor: Negro! A esta recordação, voltou a sentir o coração pesado como chumbo. Sentiu-se aliviado por ter terminado. Mexeu-se. Levantou-se, procurando fugir àquela sensação. Tinha de vencer a inércia, reagir! Ele nem era pessoa de se deixar abater daquela maneira!


           


Às vezes deixava o trabalho interferir demasiado na sua vida. Andava  a fazer exercícios de associação dos sentidos em demasia! Mas era tão interessante…


                                                                     * 

            Marcelo era neurologista e exercia a sua profissão o melhor que sabia. Era um homem maduro, já grisalho, de boa apresentação. Ninguém lhe tinha conhecido uma mulher. Sempre afável no trato, tinha as suas manias. Não conseguia começar o dia sem alguns rituais já sacralizados pelo tempo. Todas as manhãs, fazia meticulosa e repetidamente o risco ao lado, até ter atingido a perfeição, nem um único cabelo podia ficar desalinhado. O cuidado extremo com o vestir também era notório, e por vezes, passava horas de véspera, a escolher a indumentária, sempre á procura da camisa sem um vinco e da gravata perfeita. Tinha ainda outras manias mais íntimas. Gostava de se observar meticulosamente no espelho, de todos os pontos de vista, pelo que tinha um santuário secreto onde ninguém tinha permissão de entrar. Um quarto de paredes lisas onde se rodeava de espelhos. Também gostava de percorrer o mesmo trajecto sem variações no caminho para o hospital. Qualquer alteração de planos súbita, tinha um efeito devastador na sua amabilidade. Toda e qualquer mudança tinha de ser planeada com muita antecipação, de forma a permitir uma adaptação progressiva na sua mente. A sua forma peculiar de vida não permitia estreitezas com outros seres humanos. A mínima ameaça de aproximação à sua intimidade  causava-lhe um pânico incontrolável. Por outro lado, a rigidez de carácter e a sua necessidade permanente de perfeição faziam dele um solitário. Ainda assim, essa rigidez era ainda mais dura consigo próprio e os únicos pequenos prazeres que se permitia eram artísticos.  Marcelo tinha um forte pendor artístico e admirava francamente as pessoas com capacidade criativa. Tinha até uma ligeira inveja delas, pois ele próprio não conseguia criar, o que lhe causava uma enorme frustração e, à  falta de melhor, comprava tudo o que se lhe deparava sobre as várias artes e suas interligações.


           


De qualquer modo, o trabalho era de longe a sua principal fonte de prazer. Durante muitos anos, tinha sido um trabalhador compulsivo. Todas as horas da sua vida eram preenchidas pelos doentes e pelos artigos infindáveis que lia. Talvez mais pelos artigos que pelos doentes! A preocupação constante de se sentir actualizado, obrigava-o a ler sem descanso artigos minuciosos sobre toda a espécie de doenças neurológicas. Era um trabalho hercúleo que Marcelo devorava até à exaustão. Os dias passavam num ápice, entre as leituras exaustivas e as consultas monótonas e repetitivas. Muitas vezes, ainda antes de o doente se sentar na cadeira à sua frente, fazia apostas mentais sobre o que o trazia ali. Outras vezes tentava encaixa-los em padrões comportamentais e adivinhar as primeiras palavras:


           


- Mulher de cinquenta anos, vestida e maquilhada para seduzir o médico. Vai falar de tudo menos do que a trás cá!


           


- Homem quarentão, mal-encarado, vai despejar o saco mal se senta…


           


- Esta só pode ter dores de cabeça… Sr. Dr., é a minha cabeça que não me deixa em paz!


                       


Sempre que acertava ficava deprimido, soterrado pela rotina que se ia adensando à medida que os anos passavam. O tédio lentamente instalava-se, e por vezes, a náusea antecedia o início da consulta. Para aliviar a tensão durante as consultas,  entretinha-se a comparar os doentes com as suas pinturas preferidas, ou detestadas, consoante o efeito que tinham sobre si, como se fosse uma colecção. Chegava mesmo a escrever no canto da ficha: “Rapariga do brinco de pérola”, ou “Mona Lisa”!


           


No entanto, apesar deste panorama, ocasionalmente surgia o evento redentor. Quando conseguia ser surpreendido, o mundo mudava: Era uma bênção, como um relâmpago com a força motriz para o fazer voltar a trabalhar, a pôr todos aqueles neurónios amodorrados
em marcha. Renascia!


           


De novo surgia o interesse, a vontade de saber mais, o gozo pelo estudo exaustivo. Tudo se renovava e voltava a fechar-se num ciclo. A procura desenfreada do tema, a vivência intensiva do problema, a simbiose… Por vezes este concubinato era tão intenso que alterava de todo a vida de Marcelo: Tornava-se autista, sempre perdido em pensamentos mil, desatento ao mundo exterior. Passava frequentemente de um estado de letargia e dolência à actividade arrebatada, especificamente dirigida ao assunto do momento. Nada fazia divergir a sua atenção. Tudo se centrava naquele problema, mesmo quando estava ocupado com outras actividades, o pensamento enrolava-se de forma adesiva à questão em causa. Tal comportamento era altamente produtivo em termos profissionais, mas difícil de tolerar por quem com ele convivia. No entanto, era respeitado no seu meio, tinha fama de ser bom profissional e era frequentemente procurado por gente da alta-roda.


           


Recentemente, um artista de nomeada tinha recorrido aos seus serviços por ter sofrido uma profunda alteração da sua capacidade criativa na sequência de um acidente vascular cerebral. Este homem perdera a capacidade de transformar em cor e harmonia os impulsos estéticos que absorvia sofregamente de todas as fontes, desde a música até ao toque suave de uma pétala de rosa, ou mesmo o seu aroma. Sempre que um cheiro, um som, uma imagem, o tocavam, ele absorvia intensamente esse estimulo sensorial e como se a emoção fosse o catalizador, transformava-o numa obra-prima de cor e traços vibrantes. Tinha capacidades estranhas de associação de impulsos sensoriais, como a visão e a audição, por exemplo, não conseguia ouvir musica se estivesse de óculos escuros, era como se tivesse baixado o som. Por outro lado, criava associações estapafúrdias entre os números e as cores: o sete era verde e o três amarelo, ou ainda a música de Vivaldi era violeta e a dos Beatles alaranjada!


           


Desde que sofrera o acidente vascular, algo se perdera no caminho. Continuava a emocionar-se com a música, a deleitar-se com o perfume delicado do jasmim e a procurar avidamente obras dos seus colegas, mas nada disso fazia nascer ideias na sua mente para novos trabalhos. Por outro lado, os números e a música deixaram de ter conotações coloridas.


           


Marcelo ficou fascinado com este caso: a fusão da Arte e da Neurologia. Entregou-se de corpo e alma a este fenómeno bizarro que permite ao cérebro humano combinar os cinco sentidos e ver a música colorida. Pesquisou furiosamente todos os meios ao seu alcance, desde as revistas cientificas à Internet e tudo se resumia a um fenómeno, a uma palavra: sinestesia!


           


Era a sinestesia que permitia ao nosso artista achar que a música dos Beatles era alaranjada, ou que o aroma do jasmim é música suave e associar dois ou mais sentidos como se fossem inseparáveis.


 

Marcelo descobriu um novo mundo, descobriu por exemplo, que algumas famílias têm elevada incidência deste fenómeno, e descobriu também que essas famílias têm mais artistas, no sentido lato do termo, do que as famílias onde nunca ninguém viu a cor dos números. Descobriu ainda que os grandes artistas têm uma capacidade muito elevada de associar os vários sentidos como se fossem um só!


           


Pensava naquilo a toda a hora e o assunto começava a interferir no seu dia a dia: A rotina da consulta alterara-se: A obsessão pelo tema tornava-o distraído, desatento e fazia-o encurtar o tempo das consultas menos interessantes. Desenvolveu uma capacidade surpreendente de funcionar em “modo automático”, quando os doentes se alongavam nos seus discursos e lhe contavam minuciosamente as suas desinteressantes vidas. O olho estava atento, o sorriso permanecia etéreo, o discurso afável mas o espírito estava completamente ausente… divagava nos circuitos neuronais capazes de ligar uma letra a uma cor, um som a uma sensação táctil, ou, ainda mais perturbador, uma imagem a uma emoção com sensações físicas.


            À medida que o tempo passava e o espírito de Marcelo se ausentava mais profundamente, o “boneco oco” que restava de si, por vezes soçobrava perante a insistência de alguns pacientes mais exigentes e mais atentos. Nem todos se contentavam com o conforto automático que o “boneco oco” ofertava e insurgiam-se:


 

- Então Sr. Dr., não me está a ouvir? Dava-se o “clique” e regressava à terra!


           


No entanto, a pouco e pouco, foi-se insinuando na mente de Marcelo a ideia de aprofundar aquele assunto de forma concisa. Começou a fazer inquéritos sobre a presença de sinestesia, de forma sistematizada, a todos os seus doentes para ver qual a percentagem da população que usufruía deste fenómeno. Depois, desenvolveu baterias de testes complicadíssimos, para testar circuitos neuronais hipotéticos. Submetia praticamente toda a gente que encontrava a esta prova, desde a secretária do consultório ao técnico dos Raios X, já para não falar dos doentes. Ele próprio se submetia àquela avaliação de forma compulsiva!


           


Soube-se no meio académico e os seus colegas dividiram-se na forma como o encararam: Uns, com um temor respeitoso, supondo que ali poderia estar um rasgo de génio, outros, como se de um louco se tratasse e que pudesse pôr a classe profissional em risco.


           


No entanto, contrariamente às expectativas, a realização de tantos e tão elaborados testes foi do agrado dos doentes. Cada vez tinha mais gente a recorrer aos seus serviços. Teve de ampliar a clínica e arranjar assistentes. Espalhou-se o boato de que teria a capacidade de descobrir artistas, com uma simples bateria de testes! Agora, já não eram só as pessoas com problemas que recorriam aos seus préstimos, mas todas as mães enlevadas com os dotes, ou pretensos dotes, dos seus filhos acorriam ao Dr. Marcelo. Agora, não só fazia testes, como também exames complementares sofisticados, como ressonâncias magnéticas funcionais e outros afins, na tentativa de identificar os circuitos neuronais que envolviam as sinestesias e os que estariam na origem do processo criativo. Além disso, passou a prescrever exercícios intensivos para desenvolver essas capacidades:


           


Olhar para uma luz vermelha e escrever uma poesia, ouvir uma melodia de Mozart e de seguida desenhar o corpo humano…


           


Num curto espaço de tempo, tinha montado no consultório todo um circuito para avaliar, testar e treinar as capacidades artísticas dos seus doentes. O método tornou-se muito popular.        Pouco tempo passado, não só os pais com filhos dotados, mas também os pais que queriam que os seus filhos “passassem“ a ser dotados, procuravam insistentemente uma consulta. A lista de espera era interminável. O mundo enlouqueceu. Instalou-se a crença que o Dr. Marcelo “produzia artistas” no seu consultório. Toda a gente queria uma consulta! Todos queriam ser especiais!


           


O próprio criador da “máquina infernal” não era diferente dos outros. Ele era a principal cobaia do seu trabalho. Sempre que não estava a trabalhar fazia compulsivamente os exercícios de treino dos circuitos facilitadores de cinestesias que tinha inventado, acreditando piamente que assim produziria em si próprio a alma de um artista.


 

Marcelo era um crente. Acreditava no que fazia de corpo e alma!


                                                                      * 

            Foi então que Marcelo amanheceu diferente. Uma e outra vez! Inicialmente via tudo escuro, mas de uma outra vez acordou sobressaltado com o som perturbador de uma ambulância, e a sua visão toldou-se de amarelo. Assustado, levantou-se num repente e cambaleou precipitadamente a caminho do duche. O coração batia descompassado e peito arfava. Entrou em pânico e desmaiou.


                                                                         * 

 


            A reunião da Sociedade de Neurologia estava à porta.


           


Marcelo preparava uma apresentação detalhada sobre o método que usava para desenvolver as sinestesias e as capacidades artísticas nos seus doentes. É certo que ainda não tinha resultados concretos para apresentar, mas que interessava isso! O importante era mesmo a natureza da ideia, o simples pensamento que se podia criar arte em laboratório, arte em ambiente controlado. Parecem de facto conceitos antagónicos, mas ele ia provar ao mundo que não era assim, era tudo uma questão de usar os circuitos neuronais certos e engordá-los, como se faz com os porcos! Chegara a hora de apresentar o seu trabalho ao mundo científico!


                                                                     *

A luz escurecia e o rumor decrescia lentamente á medida que Marcelo tentava distanciar-se das centenas de pares de olhos fixos em si!


           


Os sons agudos produzidos pelo microfone à sua frente desconcentravam-no. Um fio de suor escorreu-lhe da testa, e sentiu um desconforto geral. Voltou a ver tudo negro, por um  momento. Era natural. O pânico das multidões! – pensou, mas não conseguia deixar de olhar para os infinitos pares de olhos que o fixavam. Foi então que algo inexplicável aconteceu: Quando iniciou o discurso não conseguiu mais do que declamar poesia. Foi um acontecimento muito perturbador. Disfarçadamente, passou a comunicação ao seu assistente e tudo foi entendido como se de uma excentricidade se tratasse.


 

- Médicos artistas!


           


A partir desse dia Marcelo nunca mais foi o mesmo. A sua vida alterou-se de forma radical:


           


- Quando tomava banho, de manhã, o contacto da água na pele soprava-lhe uma música repetitiva no ouvido. O cheiro das torradas brotava-lhe uma imensidão de ideias descoordenadas, que por um motivo incompreensível, tinha de transcrever de imediato para o papel, como se de uma compulsão se tratasse. Começou a ter rituais. O cheiro do perfume fazia-lhe formigueiros nos pés, o que o obrigava a esfregar três vezes para a sensação desaparecer. A leitura, desencadeava estranhos sabores que o obrigavam a comer sofregamente. Deixou de tomar banho, pois a música instalava-se no seu cérebro causando-lhe um sofrimento imenso. Não tocava em alimentos com cheiro intenso. Deixou de ler. Qualquer som mais intenso lhe fazia nascer imagens aterradoras e sem nexo, que o deixavam prostrado durante horas. Deixou de trabalhar, com medo que o mundo se apercebesse do seu estado. A dada altura, o simples abrir de olhos era extremamente perturbador e produzia uma exasperante sensação de queimadura em todo o corpo que o obrigava a coçar-se desesperadamente como se tivesse sarna. Começou a ficar com o corpo coberto de escoriações. Mandou retirar todos os móveis de casa, só suportava olhar para paredes nuas e brancas como a cal. Teve fazer um isolamento acústico em todo o apartamento, recusava-se a falar fosse com quem fosse e, finalmente, já não tolerava o contacto da roupa sobre a pele pois fica enjoadíssimo com os cheiros que nasciam na sua mente. De dia para dia, ia-se transformando num farrapo humano: passava os dias nu, de olhos fechados, trancado no seu quarto de paredes nuas, só bebia água, não comia com medo do cheiro dos alimentos.


           


Ao fim do terceiro dia de isolamento total, os seus assalariados alarmados com o comportamento, cada vez mais desadequado, decidiram arrombar a porta do quarto onde Marcelo se trancara.


           


Foi encontrado nu em posição fetal inconsciente e com o corpo coberto de feridas de tanto se coçar.


           


Foi um escândalo ainda maior que a fama que tinha alcançado. A clínica desintegrou-se. Choveram processos judiciais por burla. A máquina bem oleada que construíra, esvaiu-se em fumo.


           


Foi internado numa clínica psiquiátrica de renome. Nunca nenhum psiquiatra vira um caso como aquele. Era o doente mais falado na clínica e foi meticulosamente avaliado. Esteve sedado durante muito tempo. A alimentação era feita através de métodos artificiais. Tinha tubos para todas as funções vitais. A vida foi-lhe insuflada muito lentamente, uma coisa de cada vez. Primeiro a visão. Estímulos simples: luz, depois cor, depois rosto humano, sempre com tempos de adaptação, depois som, primeiro notas soltas, depois palavras e, finalmente, a música.


           


Assim, Marcelo ressuscitou para o mundo, tão devagar quanto é possível imaginar. Nos momentos de solidão gostava de pegar numa caneta e numa folha branca e debitar para lá tudo o que lhe ia na alma. Os médicos incentivaram este procedimento, como forma de libertação das tensões. A pouco e pouco reacendia-se o homem em Marcelo, mas renascia um homem diferente.           


 


Na altura da alta, encarava a vida com dificuldade. O Dr. Marcelo, neurologista de renome, morrera! Pouco havia sobrado dele. Era preciso recomeçar e a única coisa que conseguia fazer de momento era escrever. Escrevia compulsivamente todos os dias, sobre tudo o que lhe vinha á cabeça. Às vezes, de uma forma patológica. Era naturalmente a sequela da sua prolongada doença. Mesmo assim podia ter sido muito pior! Assim sempre estava ocupado! Não dava azo a que outras obsessões o assaltassem. Assim se deixou estar…


                                                                      * 

            A elite do mundo literário adensava-se na sala multifunções da maior livraria da cidade, comentando à boca pequena que os escândalos vendem sempre bem. Alguns estavam mesmo invejosos. Um pouco à parte, destacava-se um pequeno grupo de homens de porte cuidado, com um ar pouco à vontade, conversando entre si em voz baixa. Entreolhavam-se, questionando-se com o olhar se deveriam estar ali naquele momento.


 

Todos esperavam o grande momento.


           


Marcelo apareceu finalmente, sendo efusivamente elogiado pelo seu livro recentemente lançado. Tinha tido um êxito estrondoso. A primeira edição esgotara numa semana, ia na 22ª, e já estava traduzido em várias línguas.


           


Marcelo estava ali para uma sessão de autógrafos. Os homens recatados, não eram mais que os seus antigos assistentes e estavam um pouco incomodados, indecisos. O desmoronamento de toda a carreira médica do seu antigo chefe, tinha abalado os alicerces da investigação cientifica, tirando-lhe credibilidade e Marcelo já não era bem vindo no mundo cientifico. No entanto, não podiam deixar de se relacionar com a nova estrela que, após um parto doloroso, tinha finalmente nascido. Afinal, Marcelo tinha razão e a prova estava ali: O seu livro “ Música colorida” tinha sido unanimemente aclamado pela “inteligência”, como uma “pérola da literatura”e o seu autor, considerado genial!


           


E ele? Ele, era o produto acabado da arte de laboratório!


                                                                                           Fim. 


publicado por Perplexo às 09:48
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Terça-feira, 25 de Julho de 2006
poemas de a(mar)

escrevera muitas e muitas cartas ao marido que andava nos submarinos. ele nunca as recebia a tempo de responder às questões que se impunham no momento.


então decidira mandar-lhe poemas de amor. despertara assim para a poesia.


quando o marinheiro partiu para sempre, fez um luto prolongado. agora que algo mais profundo que o mar os separava, decidira parar de escrever.


em vez disso, passava os dias a reler as mensagens que ele guardara na escrivaninha do escritório. as cartas banais que começavam com um como estás e se estendiam em narrativas de episódios do quotidiano.


e as outras que culpavam a guerra de tantas pausas naquele amor. e contavam, em versos sem rima, como cresciam os filhos e a saudade.


até que um dia alguém lhe disse que bastava. que aquelas penosas leituras não o trariam de volta. que era hora de deitar fora a roupa negra e queimar as folhas de papel. cansada, acedeu. e recomeçou a escrever poemas de amor.


 


a.gil


(à minha colega de curso de escrita que escrevia poemas de amor ao marido que andava nos submarinos. e assim despertou para a poesia. uma das estórias mais breves e mais bonitas que ouvi nos últimos tempos, aqui acho que com uma pitada de ficção)  


 



publicado por Perplexo às 17:45
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Sábado, 22 de Julho de 2006
Animais de estimação, animais de quinta e animais selvagens...

Eu não sei se já repararam, mas os homens, apesar de dizerem querer ser livres, na verdade gostam mesmo é de rédea curta.



Gostam é daquelas mulheres a quem têm de pedir autorização quase para respirarem. E reparo na sorte que algumas mulheres têm com os homens, sendo completamente controladoras. Eles andam ali certinhos, direitinhos como os animais de estimação. Sempre de trela, muito bem-comportados, não entram nas lojas nem cafés ficando resignadamente à porta. Quando elas saem, dão-lhes uns afagos e já está! A verdade é que eles não aliviam as bexigas fora do penico, nem pulam a cerca, nem outros aforismos que tais.



A versão seguinte já é mais moderada. Já têm alguma liberdade mas com algum controlo. Elas dão-lhes alguma margem de manobra mas sempre em busca dos respectivos dividendos. São os animais da quinta. Têm algum espaço, mas limitado pelas vedações ou por elementos exteriores que controlam as suas acções. Porém, como qualquer animal, assim que se vêem com um bocadinho de liberdade começam logo a inventar e a querer mais. E vá de pular a cerca de vez em quando e fazer disparates. Depois voltam para as donas com ar cabisbaixo, certos que erraram, prontos para receber o perdão, jurando não tornar a prevaricar.



E finalmente temos a última versão...

Não, não é a mais interessante, nem a mais gira, nem a mais compensadora. Garantia da própria.

Termos a pretensão de tratar os homens como seres humanos que necessitam de liberdade para as suas acções é um erro crasso! Por paradoxal que pareça, estes animais selvagens não sabem movimentar-se em liberdade. Ficam perdidos, sem rumo, sem objectivo, sem nada.



Verifico, com infelicidade, que as mulheres controladoras se saem muito melhor, nestas coisas das relações, do que as permissivas. E embora digam o contrário, eles gostam mesmo é de rédea curta. E quem sabe...? Algumas vergastadas de vez em quando!


AnaGod




publicado por Perplexo às 14:22
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Sexta-feira, 14 de Julho de 2006
Adiante, camarada
Nuno José Ribeiro

Ficção apresentada ao “Prémio Barata-Novas Escritas 2001”


“Eu quero ser a Revolução. A Revolução, A Revolução. De arma na mão! Com atenção. À reacção!”


O jovenzinho imberbe veste de preto. A inevitável t-shirtzinha com a celebérrima imagem do camarada Che. Imago mundi? Na cabeça, boina preta efeitada por estrela vermelha.


Em redor do jovem “Pushckin”, um bando de estudantes. Eles de ganga e lenços étnicos, elas de saias compridas, sandálias de couro, lenços e mochilas de lona.


A sala explode em aplausos. O poeta agradece. É sempre bom ver reconhecido o talento, para mais por parte duma mole acéfala e acrítica. Viva a Revolução.


-Camarada! Estás na vanguarda do combate à reacção. Contigo, com jovens com tu, a reacção não passará.


-Obrigado camarada! diz o poeta, com uma emoção contida nos olhos. “Com um brilhozinho nos olhos”, diz a canção.


A sala explode em aplausos. Hoje há festa na célula. É o aniversário do partido. O grande facho da vanguarda contra a opressão burguesa.


Hoje, jovens, inocentes e eternamente jovens, e velhos, senís e obtusos, comemoram décadas de delícias torcionárias. A crueldade em nome da luz. O império do Gulag.


A sessão iniciou-se com a leitura de uma mensagem do Grande Torcionário,esse velho de cabelo branqueado, émulo de Torquemada, seguida de um video com a exibição do Rancho Folclórico de Nossa Senhora Vermelha dos Urais.


Depois o lanche. Bolas-de-Berlim-Leste e Sumolovsky.


A teminar, qual estrêla vermelha no topo, um baile.


Não um baile qualquer, desses com os quais a burguesia decandente e opressora perde o seu tempo em boites e discotecas, escuras e sujas como a mente e os dedos do capital.

Não! É um baile canónico. De acordo com os príncipios vermelhos.


É um baile em que o roça-roça é uma forma de luta contra a opressão, a reacção e o Grande Império do


Mal- os Estados Unidos e o seu all-mighty dollar. Uma mão na cintura liberta 50 kmers vermelhos, passar a costa da mão no mamilo liberto da menina vale meia UCP.


E, lentamente, os jovens camaradinhas vão fazendo a ocupação selvagem das jovens Latvias, Laikas e Catarinas Eufémias.


“En route” ao Grande Objectivo Final: a tomada da seara, umas vezes dourada, outras morena, outras fulva, pelo grande libertador. Falocracia e luta de classes.


E entre a monda e a seara ergue-se, estoicamente a Grande Muralha da Mãe-Camarada.


“ Revolução, revolução, sim. Com a minha filha não!”


O jovem visionário prossegue a sua retórica persuasiva. A cada Karl Marx a sua Madame Engels. E eis o martelo que se levanta, a foiçe metida em seara alheia. Enfim libertos do espartilho opressor da moral burguesa.


Os jovens- Carlos Ernesto e Rosa Fidel- estão já lutando arfantemente por uma sociedade sem classes em que tudo e todos serão uns dos outros. E a canção...do bandido é uma arma.


A entrega à causa, o despojamento, o altruísmo, a força das convicções dogmáticas, são tais que estão já libertos de qualquer roupa, essa invenção capitalista que distingue pobres e ricos, como outrora o ferro dos condenados.


Não! Estão já nús, iguais entre sí, nos corpos distintos, mas unidos na luta por um mesmo desejo. E a boca do jovem Puschkin verte já elogios aos gémeos de Rosa Fidel, irmanados e erectos na acção revolucionária.


O olhar do pequeno Carlos Ernesto percorre com brilho visionário todo um corpo ardente de vontade de lutar. E, por fim, eis chegado o momento da tomada do Palácio de Inverno.


A jovem vai-se encantado com o canto de sereia dos amanhãs que cantam.


Não, não passarão. Sim, oh sim. Oh siiiim. Estou... estou-me a ver ... na revolução.

E eis que verte o sangue vermelho escuro de quem se inicia nos ardores revolucionários.


Hoje são dois, amanhã, porventura, três. Há que formar heróis para partir os dentes à reacção.


Carlos Ernesto arrulha com voz de pomba não alinhada:


-Insulta-me!


Rosa Fidel responde “ Capitalista! Sim, meu porco capitalista opressor!”


Rosa Fidel sente Carlos Ernesto firme como se fora o Homem de Aço ou o Homem de Mármore.


Os ardores revolucionários deram os seus frutos. Em Novembro, quando se comemora a Revolução de Outubro, Rosa Fidel e Carlos Ernesto tiveram o seu primeiro bolcheviquezinho. Uma criança perturbada.


Chamaram-lhe Vasco Otelo.


Desde os seus dois, três anos que o Vasquinho subia para os bancos e debitava discursos histéricos e inflamados sobre a forca e a muralha de aço.


O padre da paróquia, generosamente cognominado “o Kerensky de Nafarros”, à míngua de melhor ocupação, alfinetava-o chamando-o “paranóico”.


Carlos Ernesto continua a sua luta pela revolução poética enquanto Rosa Fidel enbarrigava a olhos vistos.


Nos entretantos, Carlos Ernesto dedicava-se com ardor beático à conversão de jovens burguesas às delícias socialistas, tocando-as com a ponta da sua estrêla vermelha.


Com o afinco, empenho, altruísmo e espírito de sacríficio daqueles que se dedicam às grandes causas, esta alma despojada, qual mártir revolucionário, não perdia oportunidade de exibir a grandeza dos seus argumentos às infelizes -perdidas na sociedade consumista.


Com o tempo, criou um bando de seguidoras dedicadas e generosas ao ponto de sacrificarem os seus corpos à vanguarda da Revolução.


E, no entanto, Rosa Fidel,numa clara cedência à medíocridade e mesquinhez burguesas,estranhava:


- Por que razão só tens seguidoras?


-Porque as mulheres são mais inteligentes e corajosas, respondia-lhe Carlos Ernesto.


A mulher socialista é uma visionária. Vê para além da mesquinhez quotidiana. Percebe que não importam as pequenas mediocridades e infidelidades quotidianas. Trabalhar, pagar contas. Não! Nada disso importa. Seja.


Enquanto debitava pela enésima quinta vez o Rosário da Nossa Senhora Mãe de Todas as Revoluções, Carlos Ernesto aproveitava para despir Rosa Fidel. À míngua de melhores argumentos...


Como diz um brocado comunista, “ uma mentira, mil vezes repetida, torna-se verdade”...


E, en passant pour M. Hegel, o presente não tem só efeitos sobre o futuro; também modifica o passado. Os heróis de ontem são os biltres de hoje, os esquecidos de amanhã. Por isso, há-que apagá-los das nossas fotografias colectivas, como ensinam as testes revisionistas.


À boa maneira da Santissima Inquisição, a verdade é sempre só uma. Tudo o mais são desvios, devaneios, cendências aos cantos da sereia capitalista.


E é preciso punir exemplarmente quem insiste em não ver a Luz.


“Aprender, aprender sempre”.


Este texto é do Nuno José Ribeiro; a linha abaixo é porque fui eu a colocá-lo na página e não consigo apagá-la...


publicado por Perplexo às 17:14
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